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Oceano Atlântico

No Cuima foi explorador de ouro. Refrescou-se à sombra de imbomdeiros e contemplou queimadas de assombro. Quando chegou à Gorongosa embalaram-no ao som do rugido de leões e na Ilha de Moçambique, com Knopfli, respirou a insuperável beleza do encontro de África com o Oriente – à maneira exótica de Rousseau. Em Caravelas, recebeu um talhão ainda intocado do paraíso. Um escultor alto e magérrimo, tresloucado, dançava em frenesim atrás do trio eléctrico, por entre os palmeirais que se espraiavam mar dentro, até Ponta de Areia… ponto final, entre Baía e Minas, estrada natural. Em uma outra África, maís Ocidental. Em S. Paulo, com Macunaima e Glauber Rocha, conheceu o “antropofagismo” moderno e o melting pot de culturas, raças, atmosferas e da própria natureza humana. Aprendeu então a viver “o avesso do avesso do avesso do avesso.” Em Grumari e na restinga da Marambaia, salpicado pela espuma agitada das ondas, surfou ao sol tórrido de adolescentes hedonistas.
Mas foi em Monsanto, sentado nas ameias destroçadas de um castelo, que compreendeu a serenidade interior das pedras e em Vinhais, adensando-se em alamedas de castanheiros, saboreou a doçura aguada da luz portuguesa.
Instalado, finalmente, em Caxias, em frente ao mar, esperou dias a fio pela chegada do Santa Maria que trazia mangas, maracujá, jabuticaba e notícias frescas desses lugares da memória… Relendo Camões, fixou Lisboa como placa giratória da sua identidade cubista, pan-europeia.
De tudo isto guardou imagens, sons, afectações, como sedimentos, camadas de si, sobrepostas umas sobre as outras na espontaneidade natural de um sopro, de uma biografia, diferente de outra qualquer; mas com todas se identificando ocasionalmente.
Também estas obras agora expostas, oriundas dos três continentes citados, reflectem maís a biografia pluricontinental do seu proprietário do que o tão desejável intercâmbio de culturas e vivências que, como sabemos, é parco. Infelizmente, e não é de agora, a cultura de cada um dos países lusófonos é praticamente desconhecida dos seus parceiros e as possibilidades de influência e aprendizagem recíprocas são praticamente inexistentes a não ser para quem, como o proprietário desta colecção, bebeu a sua história em vários continentes. Este espaço é por isso uma pérola de novidade no sempre visto e revisto panorama das artes portuguesas ou lusófonas.
Porque não aproveitar esta iniciativa para nos inte”ogarmos sobre os motivos do desconhecimento
entre si dos povos que constituem a chamada lusofonia? A primeira questão é fatalmente a de saber o que é a lusofonia (ou tricontinentalidade, se preferirmos, ou tetracontinentalidade, melhor dizendo). De que se trata a lusofonia? Da busca de uma identidade através do que existe em comum? Em comum há a língua, sem dúvida. Mas o desconhecimento permanece. Não será preferível, em alternativa, procurar as diferenças? Perceber que, por detrás da língua portuguesa, muitas outras tão diversas e tão dispares se falaram, se falam, se pensam, se usam, ainda que frequentemente numa discreta interferência na língua portuguesa, e se constroem e desconstroem: o tupi-guarani, o kimbundu, o ronga, o swahili, os crioulos e tantas, tantas outras fOrmas de comunicação e linguagem.
Aceitando as diferenças, percebemos o que há de belo (ou ho”endo) na linguagem do Outro. De modo pessoal e superficial, evidentemente, e este primeiro passo chama-se exotismo. Assim sendo, a
desproporcionalidade dos membros ou da cabeça de uma estátua africana – normalmente associada a uma simbologia de poder hierático ou sagrado – poderá parecer ao espectador ocidental, tanto uma extravagância de ordem estética e logo aceitável de uma perspectiva exótica, quanto uma aberração similar à que levou em tempos os portugueses da Diamang, na Lunda, a inventar o Pensador – hoje símbolo nacional angolano – numa tentativa, com êxito, de introduzir os valores greco-romanos em Africa utilizando os materiais e as formas dos esculturas simbólicas usadas nos cestos divinatórios dos sacerdotes. Aqui chegamos ao ponto que mais nos interessa: nas sociedades orais anteriores à colonização portuguesa, sejam elas americanas ou africanas, a arte serve sempre objectivos religiosos. A escultura e a pintura manifestam-se em objectos figurativos ou máscaras usados nos rituais de iniciação – masculina ou feminina -, entronização de soberanos ou de constituição de sociedades secretas. O branco é sempre a cor dos antepassados, o vermelho a cor da vida e o negro, em geral, serve para afastar os meleftcios com o próprio mal. Estas cores aparecem sistematicamente nas obras dos artistas modernos, ainda que de mistura com outras introduzidos segundo novos padrões fixados pelos autores. Ainda assim, a visão exótica herdada do discurso colonial permanece aqui e ali como que a assinalar que ser brasileiro, angolano ou moçambicano não é ser tupi-guarani, kimbundu ou tsonga. Também não é, de modo nenhum, ser português, e sim um ex-colonizado do Império. Vejam-se, por exemplo, as pinturas onde se insiste na sensualidade do corpo da mulher (não branca) ou aquelas onde o homem africano é apresentado como um anão desproporcionalmente atrofiado ao lado do ocidental, lembrando uma certa cinematografia tarzanística.
Nesta exposição expõem-se de Moçambique autores consagrados, como Malangatana ou Bertina Lopes, entre outros, onde é ainda visível a influência das culturas tradicionaias locais, enraizadas nos ritos de passagem e nos ciclos naturais. É uma arte fundada em realidades rurais que o tempo progressivamente vai estiolando. Em alguns dos autores de gerações mais jovens, os temas mantêm-se, mas a obra desliga-se desse vínculo etnográfico, privilegiando a autonomia da obra.
De Portugal, Victor Pinto da Fonseca, seleccionou um conjunto muito restrito de autores, a maior parte dos quais foi responsável pela renovação do panorama das artes portuguesas durante a década de 80. Qualquer um destes artistas estava então mais empenhado no alinhamento da arte portuguesa com as vanguardas europeias e americanas – tendo em mente a intemacionalização – do que em reflectir sobre o desmoronamento do império colonial. As obras expostas de Rui Sanches, Rui Chafes e Cabrita Reis, entre outros, são de grande qualidade e testemunham um dos momentos mais ricos e criativos da nossa história cultural recente.
Do Brasil, que em si mesmo é um continente onde cabe tudo e onde vale tudo, destacam-se as obras de Nazareth Pacheco e Vic Muniz – ambos na geração dos 40 anos – a primeira, autora de instalações onde a crueldade é intimamente vinculada a uma sensualidade requintada e o segundo fotografando cenários que ele mesmo construiu, criando uma disfunção entre o modelo e a sua representação.

José Sousa Machado Alberto Oliveira Pinto

Publicado a 22 de Novembro de 2004