“Paralelo 36” – Linhas imaginárias
Quando Tatlin fez os seus primeiros “contra-relevos” ou “relevos de canto” (1915) logo após uma decisiva viagem até Paris (onde pôde conhecer Picasso, Lipchitz e Archipenko), partira das colagens cubistas para ensaiar a expansão da pintura até ao campo da escultura, numa ambiciosa pesquisa em torno da conquista do espaço tridimensional. A actual deriva de Luís Nobre até à distensão do espaço também é o resultado contingente da manipulação dos materiais e, embora seja muito mais intuitiva que referenciada, podemos situá-la na linhagem de várias propostas que tornaram possível esse desenvolvimento aparentemente espontâneo do desenho rumo ao domínio da instalação.
Dos cubistas aos artistas conceptuais, dos quais se destacam obras seminais de Tatlin, Schwitters, Duchamp, Gabo, entre muitos outros autores que nos levariam até à frescura revolucionária do concretismo e neo-concretismo brasileiro (sobretudo com Oiticica, Clark e Pape), há todo um percurso multifacetado de experiências que testaram a relação interdependente entre o espaço e os seus elementos constituintes, levando-a sempre mais longe, e que não deve ser esquecido. São etapas históricas essenciais para elucidar a destreza com que Luís Nobre liberta as superfícies desenhadas dos seus trabalhos iniciais, projectando-as nos limites dos planos convencionais da representação.
Daí a importância da linha imaginária, convencionada, de que o “Paralelo 36 ” é fruto e que o título da presente mostra cita, dando uma importante pista interpretativa. Trata-se também aqui de uma circunscrição espacial (a sala de exposição) que configura um local no qual é determinante o posicionamento do espectador, pois a nossa localização é sempre definida a partir do ponto onde nos encontramos. Alterada a percepção desse espaço pelos múltiplos objectos e imagens que o povoam, situamo-nos num espaço construído em diferentes estratos, perante um jogo de escalas e de planos rumo ao infinito. A composição tornou-se agora processo de construção por excelência, já não no plano bidimensional do desenho, mas nas intersecções dos vários planos convencionados, e, a partir do canto (num intervalo de planos) afirma a sua continuidade no espaço real.
Por isso também não será de estranhar a afectação autobiográfica desta instalação: Luís Nobre usa frequentemente “coisas” que encontra no dia-a-dia, transformando-as até à perda da referência original (como quando abole os volumes do vaso-caniche através das três linhas de cores primárias – amarelo, azul e vermelho – que já se tornaram recorrentes no seu trabalho), ou sinaliza as superfícies irregulares de papéis amarrotados que depois forram as paredes dando expressão à própria “dobra” enquanto metáfora de um “estar entre”. Esta liberdade entre linguagens é o grande fôlego da divisão imaginária de Luís Nobre. No fundo, é tudo real, tão real quanto os observadores que nos espreitam do cimo de um balão e relembram a curiosidade dos exploradores novecentistas pelo desconhecido: o que está para “lá de” um determinado lugar. Esse “lugar de contacto” de onde partimos é um ponto de encontro que une e separa os diferentes planos e superfícies, uma espécie de última fronteira entre o observador e o espaço da representação, e que nos mergulha numa dimensão topológica onde as múltiplas dimensões se equivalem num único fim: o princípio de uma outra coisa, uma visão.
Lúcia Marques