Sub specie aeternitatis
Wittgenstein numa conferência sobre ética, fala do desespero que sentia quando tentava dizer alguma coisa que verdadeiramente tivesse valor. Este desespero era o sintoma da dificuldade em fazer com que a linguagem dissé-se aquilo que ela nunca poderá dizer: o bem, o belo, a ética, a estética. Para completar esta imagem o filósofo, descreve esta tentativa em encontrar a palavra certa, a palavra que salva, como uma corrida desesperada contra as grades da nossa prisão.
Da metáfora de Wittgenstein toma-se a lição, ou aprofunda-se a evidência, que o humano é um ser numa prisão: preso à linguagem, ao mundo, ao campo visual. As grades desta prisão são constituídas pela experiência, a cada dia renovada, que o tempo tem um limite e o espaço é limitado. Nesta nova série de desenhos de Jorge Feijão existem duas prisões que não são para os nossos corpos, mas para a matéria, pulsional, erótica e muitas vezes grotesca, onde a arte vai buscar alimento. Matéria, em permanente metamorfose, que arde dentro das grafites, e invisível nas folhas de papel.
Nos outros desenhos também se experimenta o ‘estar-se preso’, aí o elemento de aprisionamento que impede a saída é o próprio mundo que, ao aparecer sub specie aeternitatis prescinde da nossa presença e assume-se como entidade regulada por leis internas de movimento: mas, neste caso, ficamos do lado de fora a querer sair do vazio, do infinito, do eterno e a querer entrar na plenitude mundana, na finitude, no tempo presente, na prisão que é o mundo. Este fez-se objecto de contemplação — por isso está pousado sobre um plinto —, ficou frio e o nosso amor só se pode expressar sob a forma de exercícios do olhar. Ver assim o mundo significa vê-lo como objecto só alcançável através da contemplação e dos exercícios mais extremos da espiritualidade.
Esta contemplação é paradoxal porque a visão sub specie aeternitatis tem na experiência do limite o seu primeiro sinal e na prática artística este é um território fértil. No caso de Jorge Feijão os seus desenhos começam por conhecer um primeiro limite na folha de papel, depois na figura e, depois, no seu próprio gesto. Por isso muitas vezes os desenhos parecem querer fugir da superfície, outras vezes transformam-se em nebulosos centros de acumulação de matéria e energia a que nada talvez possa corresponder. Muitos projectam sombras e transformam o ponto de vista do espectador em campo de escondimento, lugar a partir do qual só se podem ver vultos, sombras, fantasmas e nunca as coisas reais.
A cada desenho é o nosso olhar que, através da presença da negatividade introduzida pelas sombras e pelo sem forma, se vai purificando do excesso e, paulatinamente, construindo o local de onde se pode ver o mundo. O “biombo” de Jorge Feijão é um desenho-síntese porque corresponde ao reconhecimento da matéria humana como seres condenados a espreitar por entre as fissuras das camadas rochosas de que as coisas são feitas: ficamos sempre na sombra e mesmo a luz que recebemos é a que sobra do outro lado, aquela que é emanada pelo eterno que se esconde sempre atrás do “biombo”.
Nuno Crespo