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Novas Geografias
MÓNICA DE MIRANDA

Comissária: Lúcia Marques

A artista MÓNICA DE MIRANDA
Mónica de Miranda é uma artista cuja biografia cruza diferentes nacionalidades reflectindo-se desde logo essa intersecção fértil de referências no seu próprio trabalho. A sua obra tem dado origem a uma miríade de paisagens com variadas identidades culturais, recorrendo também a múltiplas possibilidades de expressão (vídeo, fotografia, som, escultura, instalação) para reflectir sobre os novos territórios transnacionais do mundo onde vivemos. Interessa-lhe o modo como a experiência migratória global se tem tornado uma nova actividade topológica, influenciando decisivamente a recriação de fronteiras geográficas, culturais e sociais, bem como a nossa própria noção de “lugar” e de “sentimento de pertença” a um contexto específico.
A artista parte da sua própria experiência pessoal e do seu círculo de amigos, familiares e colegas, para levar a cabo uma série de estratégias artísticas, habitualmente feitas através de uma rede activa de colaboradores, nas quais a participação é estimulada, motivando assim também o debate sobre a própria criação artística junto de públicos mais alargados, nomeadamente através de workshops desenvolvidos com comunidades locais. Ou nas suas palavras em conversa para a preparação desta exposição: “É uma reflexão da minha própria experiência de imigração e relação com essa realidade dentro da minha comunidade pessoal de amigos e familiares. Reflicto sobre a minha biografia e território transcultural que ocupo no Mundo” (Mónica de Miranda).

NOVAS GEOGRAFIAS: Londres-Lisboa-Amesterdão
Novas Geografias, de Mónica de Miranda, é uma exposição que surge do desenvolvimento dessas actividades multifacetadas, permitindo um olhar actual sobre o trabalho que a artista tem vindo a desenvolver nos últimos anos. Organizada na primavera de 2007, em Londres, na 198 Gallery – Contemporary Arts and Learning, a sua itinerância foi pensada como um circuito entre grandes cidades marcadas por fluxos migratórios, implicando a co-produção de um conjunto de novos trabalhos relacionados com o respectivo contexto local de apresentação. A exposição assenta assim no estabelecimento de uma rede co-curatorial que liga Londres (Eva Langret/198 Gallery), Lisboa (Lúcia Marques/Plataforma Revólver) e Amesterdão (Evelyn Raat/Imagine IC), conectando os diferentes espaços de apresentação e respectivos interlocutores.

A exposição na PLATAFORMA REVÓLVER

Acolhidas pela Plataforma Revólver, um espaço alternativo ao circuito institucional de Lisboa, estas “novas geografias” propõem uma reflexão sobre o facto da criação artística se ter tornado o território por excelência da interculturalidade, tendo a obra de Mónica de Miranda como ponto de partida. Trata-se da primeira mostra individual da artista em Lisboa, na qual se reunirão 3 novos trabalhos relacionados com esta cidade (Greater Lisbon – A to Z, Tuning Lisboa, e Where r u from), para além de 4 séries realizadas entre 2004 e 2007 (Changing skins, In the Back of our hands, Bitting Nations, e States) e de uma escultura inédita (Comic Relief, 2007).
Houve ainda oportunidade de criar uma extensão da exposição no Voyeur Project View (de 12 de Junho a 13 de Julho 2008), permitindo ligar duas das mais promissoras estruturas que em Lisboa têm dado espaço a projectos independentes no domínio da arte contemporânea.

As “novas geografias” transitarão por sua vez para o Imagine IC – Imagine Identity and Culture de Amesterdão, sob curadoria de Evelyn Raat, somando ao conjunto de trabalhos comuns à exposição de Londres e Lisboa as novas produções que mapeiam as diferentes comunidades que actualmente caracterizam a maior cidade dos Países Baixos. A última etapa desta itinerância terá então lugar em Londres, num regresso à 198 Gallery, que apresentará uma selecção das novas obras realizadas nas capitais inglesa, portuguesa e holandesa, reunindo as diferentes perspectivas trabalhadas por Mónica de Miranda numa rede de cidades, locais, pessoas, biografias, identidades.

Publicado a 7 de Maio de 2008

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S/Título
NÁDIA DUVALL
Toques, 2008, técnica mista sobre tela, 200x187 cm

Toques, 2008, técnica mista sobre tela, 200x187 cm

 Gravidade e graça

Even at this very moment, action, work, love, thought, the search for truth and beauty are creating certain realities which transcend the transitory nature of the individual. And the fact that this assertion has become trivial, that it has been put to use too often – sometimes to worst kind of ends – does not mean that it has stopped being true.

 Henri Lefèbvre, Critique of Everyday Life [1947]
Para Lefèbvre , cabe aos seres modernos de cada tempo procurar dar o passo seguinte, aspirar ao não realizado, ao porvir. São seres insatisfeitos com a sua condição contemporânea [que porém não rejeitam], mas que de forma mais ou menos consciente derramam sobre a experiência quotidiana dessa condição, contingente, um desejo de superação, crítica e radical. Na Arte dita Pública, esse é um traço fundamental que legitima o acontecimento como categoria filosófica, nomeadamente por via de acções de autoria partilhada e processos sociais colaborativos. Estéticas relacionais. Numa arte que permanece no ateliê ou na galeria, no circuito privado, como acontece com Nádia Duvall, tal superação corresponde a um processo de evolução individual, ao ritmo dos avanços e dos recuos de um conhecimento progressivo dos próprios parâmetros e limites da acção, onde a ânsia pela liberdade e o significado se expressa numa relação tendencialmente emancipatória face à matéria plástica. A busca de uma graça [partilhável].

Perante esta primeira exposição individual de Nádia Duvall, temos o privilégio de ver desenrolar-se à nossa frente um destino, duro e inevitável como todos os destinos. A Nádia coube acontecer-lhe empreender um projecto artístico de refundação do prazer da plasticidade [Plastik, na língua de Joseph Beuys]. Digo ‘acontecer-lhe’ porque, como adivinhará quem com ela priva, trata-se de um conjunto de trabalhos que, sendo determinados por uma mente e uma mão, um corpo, em muitos momentos de forma deliberada e precisa – Nádia é praticante avançada de artes marciais –, não deixam de pressupor, ao mesmo tempo e em tensão criativa, uma dimensão de pulsão, automatismo, de inconsciência. Isso torna-los-á uma forma dissimulada de misticismo. Canais de uma subjectividade transpessoal.
Na ESAD.CR, onde a artista acaba de concluir os seus estudos, o seu trabalho é há muito um caso especial de convicção [obsessão?], intemperança [autodestrutividade?], beleza [estética?]. As suas telas de grande formato pressupõem um processo de literal habitação da matéria plástica pelo corpo da artista, implicando o envolvimento de todo esse corpo, como máquina, no processo de apropriação da praxis pictórica. Trata-se de assegurar ao acto criativo uma processualidade em que a concentração mental e o movimento controlado se aliam ao idealismo de juventude para instaurar uma experiência total violenta, que abdica de comentários e contextualizações. Uma evidência que traduz uma energia com elevado grau de pureza, sobranceria.

Na ESAD.CR já tivémos, professores e colegas, o contacto quotidiano com esta visualidade orgânica, configurações em que a plasticidade do gesto artístico é resultado de um ritual solitário – de espectacularidade mais pressentida que exposta [apesar das várias performances que a artista regularmente propõe]. Mais que a partilha da sua técnica [cujos aspectos experimentais, determinantes, relativos às reacções químicas, esconde deliberadamente], é uma coisa que está ali, que se impõe, para ser fruida esteticamente por meio de um dispositivo específico, o do género pictórico.

Porque não se trata da proposição de um ‘mundo próprio’ com significados deliberados, o gesto artístico é em certa medida o de uma desdiferenciação perante a ideia de autoria [e de autonomia, enquanto expressão de interioridade], e por isso estamos perante um processo para o qual o virtuosismo não está em qualquer tipo de técnica académica, mas na convicção, na necessidade e na entrega de um corpo a um projecto de arte. À investigação subjacente a esse projecto. Mas é inerente ao trabalho, o qual se mantêm a grande distância da busca da empatia, também, e talvez por isso mesmo, um noção política de publicidade [no sentido de Arendt], a afirmação em crescendo de uma identidade individual através da apropriação do conceito de arte – algures entre a insconsciente [e despolitizada] ‘mão’ de Pollock e a cerebral consistência intelectual de um Klein [ambos reconhecidos por Nádia como referências].

Perante as pinturas de Nádia, que habitam um território tão vago quanto objectivo, cabe ao espectador procurar e encontrar o seu lugar. Esse lugar pode ancorar-se em diferentes paradigmas da recepção:
– para os advogados da processualidade, está lá o gesto, a performatividade, um dispositivo de emancipação individual, um sentido de missão;
– para os adeptos do Belo como objectificação do acto criativo, não é fácil ficar indiferente a uma gramática de acasos que tanto evoca o surrealismo como o dripping;
– para os amantes do minimalismo, bastaria surpreender na aparente aleatoriedade das configurações fixadas uma natureza em processo, a experiência do total [acentuada pela concisão cromática];
– para os defensores da transversalidade, é possível reconhecer no discurso desta criadora abertura para, no futuro próximo, alargar o âmbito do seu trabalho [Duvall prevê para breve recorrer à colaboração de cientistas na área da Física e da Química]…

Em qualquer uma destas hipotéticas posições-tipo perante a obra de Nádia Duvall, releve-se porém um valor comum, o da Verdade. Por via da problematização da relação entre corpo e obra, mente e forma, do carácter obstinado da busca e do rigor documental que a artista faz questão de incluir no seu programa, tal verdade advém de um sentido do valor da liberdade. Um valor cultural que, na sua aparente autoconfinação – aos materiais e habitus da Pintura – se torna por isso mesmo mais vivida e apropriada. A Verdade como Poiesis, uma livre poética do fazer, em imponderabilidade, e que se apresenta como ambição e entrega, ostentando uma dimensão terapêutica [ainda Beuys], mas por enquanto ainda não se encontra mediada pela serenidade estóica. Esta é uma arte que se esconde e revela ao mesmo tempo, convidando o público a presenciá-la como peculiar expressão do efémero. Um acontecimento, privado, mas por todos.

Mário Caeiro, docente na ESAD.CR

Publicado a 7 de Maio de 2008