A disciplina do desejo
Pensar o desenho, quando não se trata de comentar o que se revela nas próprias linhas ou na estrutura de um conceito, é uma forma de pensar a disciplina necessária para lidar com o desejo. Nuns casos é evidente a intenção consciente de explorar mais a firmeza da forma, noutros a de dar o máximo de liberdade à expressão do corpo que se grafa; porém, é no tipo de tensão, entre aquele que faz e o que resulta feito, que se manifesta a distância conseguida relativamente à vertigem da potência. É uma operação que faz parte do drama intrínseco ao artista — presumindo a adequada apropriação das gramáticas do seu métier —, mas é também o cerne do trabalho de si; regular a intensidade, quantas vezes abafar, dessa pulsão ou potência.
De Bartleby, personagem de H. Melville, diz Agamben, que vem para “salvar o que não aconteceu” — ou libertá-lo, como quase sugere, em anagrama, o nome escolhido para o escriba. De facto, extrapolando um pouco da sua Poética, é assim que Aristóteles aborda o seu conceito de arte; segundo este, ela ocupar-se-ia do que poderia ter sido. Potência irrealizada, imprevista e imprevisível antes de se dar, é, também, o desejo que emerge, já domado, no fazer do criador.
Da transformação, necessariamente individual, que a formação técnica e histórica implica em cada um (mediada pela constante prática do exercício), veículo para a libertação ordenada dessa energia, resulta a modalidade disciplinar posterior. No entanto, esta desenvolve-se, não porque a aquisição das formas disciplinadoras, ainda que apreendidas na sua inteira significação, acrescentem mais ou outra energia a uma prévia — naturalmente, a que garante a existência — mas porque, exactamente, já havia outra que elas tornam evidente; a que permite tanto o preferirei não de Bartleby como tudo aquilo que poderia ter sido. É o que pode estar/dar a mais, ainda que seja uma recusa ou uma ausência, que distingue o excepcional.
Se na obra anterior da C.R. já se sente a dinâmica do desejo (e o des-tecer das marcas que suporta — por exemplo, as do feminino, na litania do lamento pela palavra que se prolonga), a presente ocasião serve, de modo privilegiado, para que se possa apreciar o rasto, laborioso e paciente, da libertação dessa potência. Quase à vista na superfície do papel, figuradamente, sente-se o esforço disciplinado da vontade, exercido contra (antes) e sobre (após) esse excesso que transborda, ainda se domado, em aveludados blocos opacos — desejo já malhado na bigorna do rigor.
Mesmo se há ‘desejo de disciplina’ ele será sempre segundo, como a própria disciplina, em relação à potência excepcional; ambos são manifestação do mesmo, i.e., aspectos ou estados dessa energia, contudo, em diferentes níveis. É no saber dessa diferença, o que implica o respeito pelos domínios que lhes são específicos, que se elabora o trabalho do desejo — de incorporação ou de inscrição. O que sobra como obra, enquanto marca ou traço, é uma sombra da sua realização (ou resolução) na própria vida como trabalho de si.
Manuel Rodrigues