
Sandra Cinto, cavalo-marinho, 2008, caneta permanente e pintura sobre fibra, dimensoes variaveis
Artistas: Diogo Pimentão, Gonçalo Sena, Maria Laet, Nuno Ramalho, Pedro Gomes, Sandra Cinto, Rachel Korman, Rosana Ricalde, Rui Horta Pereira
Comissário: Paulo Reis
Caro voyeur,
Se sente-se atraído para achar algo de literal nesta mostra, insisto que ficará desapontado. Contudo se pretende encontrar o encantamento que o filme de Peter Greenaway suscita, o Contracto do desenhista apresenta-se como uma proposta tentadora. Como também o foi para mim o desafio ao solicitar a cada artista que criasse uma obra especialmente para o espaço, envolvendo algumas considerações apontadas pelo realizador no referido filme. Afirmo que a ideia da visualidade aqui pretendida não se supõe literal, mas sim indicial de algumas situações sugeridas pelo autor. O que se põe em questão neste jogo são os valores da ciência, da moral, da sexualidade, da religião, do poder e, finalmente, da capacidade humana em contrariar expectativas. Uma ligação perigosa que desenrola-se através do olhar arguto de cada artista. Na acção do filme, a encomenda do trabalho é derivada da provocação para que ele – artista – mostre seus dotes e imprima sua versão da história que acontece a luz dos factos.
Como em toda cinematografia de PG, a dualidade vida e morte é representada por cenas alternadas de finitude seguidas por de nascimentos. Toda simbologia dos números, da ornitologia, da astrologia, temas e obsessões do autor são constantemente evocados. Os números, em especial, são os marcadores do tempo, das encomendas, das situações narrativas, das mortes, das frases e do timecode. A cinematografia de PG é um desafio ao intelecto, repleto de puzzles intrigantes que obrigam ao espectador, através de pistas e vestígios, a uma investigação a história, a ciência, a história da arte e a filosofia. O corpo ocupa o lugar central neste jogo, sendo pois a chave para a compreensão do jogo ao ocupar o lugar de destaque no seu glossário visual. Para PG quando o corpo está nu é sereno, quando vestido é pesado de culpa e de vergonha, pois a roupa é o mais forte artefacto cultural.
O excesso de exposição do corpo leva ao canibalismo – metaforicamente em The pillow book e literalmente em The cook, the thief, his wife and her lover – numa alusão à moral excessiva proveniente da tradição cristã, como sugere o autor. O consumismo capitalista e o cristianismo têm a mesma sinalética de metáfora do consumo do corpo. Para o realizador, ele atravessa todos os tempos, todas as culturas e identidades e representa o Eu físico. Afinal todos os seres têm na sua exterioridade uma forma de filtrar a imagem interior. As interpretações variam, os rituais mudam, mas o corpo continua imune. O corpo nos filmes de PG ignora as modas, muitas vezes não é jovem ou elegante e por vezes é mesmo feio, escapa aos estereótipos criados pelas modas e é claramente evidenciado desde seu interior e o seu exterior, o doente e o são, a deformação e a transubstanciação, numa enciclopédia fisiológica do corpo.
A cultura como bem consumível é também uma das metáforas mais usuais, chega mesmo a canibalizá-la ao introduzir uma imagética revolucionária retirada da pintura renascentista, barroca e maneirista, para estupefazer ao espectador. PG pinta mais do que realiza: “gostaria de encontrar uma maneira de introduzir no cinema todas as coisas que têm uma tradição histórica muito mais longa de produção de imagens ocidental. Certamente em relação à tradição imagética ocidental, deveríamos examinar todas as centenas de milhares ou dezenas de milhares de imagens dos últimos três mil anos. E deveríamos utilizá-las no cinema com a mesma intensidade que dedicamos a textos escritos,” sugere PG.
Mas meu caro voyeur, estás a perguntar-se qual a relação pretendida entre estes artistas e o filme? Poderia dizer a prática do desenho como principio e fim da obra. Não tão simplista foi o pretendido, diria mesmo que gostava antes de tudo era de estabelecer um contacto visual entre si e as obras, deixá-las falar por si, esclarecer as relações, evidentes ou não. Posso, entretanto, indicar um fio vermelho a percorrer a estrutura interna deste labirinto – o carácter fetichista em Pedro Gomes e Rachel Korman – a dicotomia do poder em Nuno Ramalho – as (contradições) afirmativas na física por Gonçalo Sena e Maria Laet – a natureza transfigurada em Sandra Cinto e Rosana Ricalde – a cultura visual como valor supremo em Diogo Pimentão e Rui Horta Pereira – chaves para se entrar neste espaço mágico denominado arte. (A)venture-se!
Paulo Reis
i- Choderlos de Laclos, Les liaisons dangereuses, editions Gallimard.
ii- Timecode é o código em números que marca as cenas nas películas para ajudar no processo de edição.
iii- Além de curtas e médias metragens, Peter Greenaway realizou uma dezena de filmes abordando os memos temas, ver também os títulos A zed and two noughts, 1986, 112 min. / The belly of an architect, 1987, 105 min. /Drowning by numbers, 1988, 108 min. / Prospero’s books, 1991, 123 min. / The baby of macon, 1993, 120 min, além dos citados no texto.
iv- Goethe, As afinidades electivas, Lisboa: Relógio d´Água editores.