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7
Nov
Do Subterrâneo Opaco
JOÃO GONÇALVES
Imagem-de-divulgação
 

Se a sala em que nos encontramos estivesse às escuras, discutir a cor do tecto, só seria efectivo enquanto suposição. Primeiro, porque a qualidade cromática de um objecto, o tecto neste caso, depende directamente da matéria luminosa sobre ele incidente, que estaria ausente, segundo porque dizer-se que o tecto é branco, pressupõe que haja um padrão de comparação -isto é branco- a partir do qual podíamos afirmar : o tecto é branco. À semelhança do que se passa com o rio, exemplo mais corrente e visível durante o dia de uma das janelas desta mesma sala, acordar sobre a cor de um objecto depende então da luz, e de um padrão comum que permita afirmar que o tecto é branco e o rio azul e não, ao invés, pérola ou verde, ou seja, precisamos de um padrão que adjudique o acordo, e da luz como condição da prova ; Por outro lado, podíamos concordar se aceitássemos uma simples précondição -um tecto é sempre branco-, -um rio sempre azul- hipótese para a qual não mais precisávamos de luz. Donde se conclui que a luz enquanto metáfora da verdade não é suficientemente operativa. No entanto, é fácil perceber o quanto a luz é culturalmente indissociável da noção de verdade. Assume-se que esta existe, que é exterior ao sujeito, por isso objectiva, e que permanece obscura até que a razão a ilumine.
                                                                        
“Como é que se consegue ver a escuridão ? “ i

A forma como continuamos a valorizar o racional, é herdeira de um princípio equalitário que efectivamente procurou na razão um factor agregador e que hoje, se pode encontrar no entendimento que se dá á objectividade como factor universalizante. O problema de uma noção de verdade objectiva, tem evidentemente consequências sobre a forma como se estrutura a possibilidade de haver conhecimento, para além de mim, exterior a mim, o que tendo sido remetido para a ideia de deus no passado, é hoje explorado pela ciência enquanto discurso cultural. Assim, ainda que tenhamos condições de perguntar sobre quem decide acerca do bem e consequentemente, sobre aquilo que é bom, até pela falência dos factos, a associação que vulgarmente se faz entre provas e verdade, tem tido como resultado a progressiva corporatização do conhecimento : eu não sei o número de telefone de um amigo, eu tenho o número no meu telefone.
De igual modo, a presente lógica cultural favorece a objectividade na construção de sentido. Em detrimento de um espaço imaginário, interior, subjectivo, privilegia uma construção de sentido assente numa experiência com lugar no espaço literal. Nega estruturas internas reconhecíveis individualmente e distintas segundo esta mesma lógica do bem comum, em benefício de proposições linguísticas entendidas como forma pública de criar sentido, na medida em que, e é este o argumento, deste modo o sentido torna-se inequívoco. Dito de uma outra forma, desvaloriza-se o significado em função do significante donde, o sentido adquire características de legenda. Instalação, performance ou estética relacional, estratégias presentemente dominantes e todas elas de carácter manifestamente literal, apesar de contarem com o corpo na construção de sentido (aparentemente) ao dependerem de proposições linguísticas que possam garantir a objectividade pretendida, negam a corporalidade do mesmo ao não o diferenciar, ou seja, partem de uma lógica de não diferenciação dos corpos, como forma de subscrição ao princípio de igualdade democrática, mas simultaneamente, reduzem a noção de participação a uma retórica de presença de um corpo indiferenciado. Um a seguir ao outro num aqui e agora perpétuo

 “ É melhor o trabalho, aquele que tira as relações fora do trabalho e as torna função  do espaço, luz, e o campo de visão do observador “ ii

É uma lógica construída sobre o pressuposto que através do uso da proposição linguistica, o pensamento metafísico, bem como a manutenção de estruturas de poder, podem ser postos de parte. No entanto ao fazer uso da noção de objectividade, acaba por reafirmar a ideia segundo a qual existe uma verdade exterior ao sujeito, assim como, por impor novas estruturas de domínio ao negar a capacidade individual de construção de sentido. Se o valor em causa é o bem público importa aliás perguntar, qual público ? E quem decide sobre o bem ? É uma lógica assente num modelo de sujeito tecnológico, ligado à intensidade da experiência e ao evento como única forma de participação e que depende, na arte contemporânea, necessariamente do pré-formulado. O indivíduo deixa de ser o sujeito que experimenta para passar a ser o objecto da experiência. Note-se por exemplo, como seguindo um princípio de circulação e consequente capitalização do visível, o peso que 2 as inaugurações, feiras e bienais, passaram a ter no mundo económico ligado às artes plásticas ( e que por sua vez é usado como forma de dinamização financeira ), onde a começar pelos agentes, que aliás pouco se distinguem de uma mercadoria em trânsito, a objectificação do sujeito contemporâneo é difícil de ignorar, veja-se o estranho caso, de se achar boa ideia alguém querer levar um tiro. Como forma de resistência, é então fundamental reflectir a representação como não metafísica, de modo a perceber na arte a possibilidade de pensamento ligado à emergente noção de evento e comunidade, interiorizando como possíveis hipóteses, o devir e a diferença. Devemos exigir mais da ideia de arte e aceitar o cosmopolitismo, para quem precisa e não exclusivamente para quem pode.
O brilho, esse, não deve esconder que a luz é toda ela interior.

“A participação no social é, de facto, maioritariamente organizada através de ritos em que segredos abertos  são partilhados. No capitalismo, como Karl Marx notou, o segredo é o valor abstracto do valor, que numa economia de trocas complexas, é essencialmente vazio”iii

É então urgente uma reavaliação ontológica dos processos de representação, sendo para isso necessário, abandonar o princípio de correspondência segundo o qual existe um real constituinte (ideia que está na origem da atribuição de uma lógica replicante à representação). Hoje, temos condições de construir aquilo que precisamos, de reconhecer na ilusão o valor da ilusão, de dar voz ao invisível, de numa palavra, fazer verdade. Ao identificarmos a não operatividade de uma lógica objectiva da verdade, estamos a dar o primeiro passo no sentido do seu valor de uso e de situar na verdade, um princípio inter-subjectivo, atrás das formas, para lá do sol. Contrário ao que é proposto pela modernidade e no seguimento da ciência enquanto discurso ( fundamental refira-se, para o melhoramento das condições materiais em que resultou ), contrário à indexação daquilo que é exterior por meio de isolamento e medição ( metodologia própria do método científico ), julga-se ser hoje fundamental pensar sobre processos de inclusão através do reconhecimento do outro enquanto tal, propondo-se para isso e em alternativa à opticalidade, uma reflexão sobre o toque enquanto metáfora de interiorização da diferença. Lembro-me a propósito de Chaplin e de “Luzes da Cidade “, cuja ideia central -o amor é cego, não tão prosaico quanto possa parecer- é desenvolvida através do tacto como condição de re-conhecimento do outro, ideia aliás, muito próxima da de re-presentação. e que passa no fundo pela possibilidade da ausência ser pensada como presença, ou por outras palavras, por tornar o reconhecimento operativo. Em conclusão, é preciso arranjar uma forma contemporânea de acreditar em aparições, de modo a ter presente o in-visível e desenvolver pelo outro um sentido de responsabilidade actuante.

“O problema com os modelos dominantes na teoria cultural e literária , não se prende com o facto de estes serem demasiado abstractos para articular o concreto do real. O problema é que não são suficientemente abstractos para articular o real incorpóreo do concreto “ iv

À semelhança de períodos anteriores, nos quais em paralelo com alterações no estatuto do objecto e face a profundas mudanças socio-culturais, a escultura oferece hoje, um lugar simultaneamente complexo e amplo ao pensamento crítico, para lá do objecto enquanto signo de si mesmo e para lá do espaço literal. Ao ligar-se a um reconhecimento individual, torna o real maleável e o sujeito contemporâneo directamente responsável pela produção de sentido. Através do desenvolvimento e interiorização de estruturas internas, a escultura devolve o conhecimento ao corpo, oferece resistência à autoridade sobre o sentido do real, e em contraponto com um significado objectivo, exercício factual, introduz o desejo, metonímia do necessário, como condição política. Partindo do indivíduo, a escultura tem a capacidade de destabilizar os limites entre a esfera pública e aquilo que é privado, ao acrescentar à dimensão do visível, próxima do primeiro, a afirmação do tacto, estruturante para o segundo. Perturba a contingência do objecto e posiciona-se entre a substancialidade e a possibilidade, tendo por isso papel preponderante na emergência do evento. Note-se o caso de revoluções políticas onde o gesto destrutivo sobre esculturas, compete inúmeras vezes para a mudança, enquanto acto fundador. Á relação directa que um posicionamento efectivo estabelece com o corpo no espaço literal, a escultura acrescenta neste sentido, a incorporalidade do corpo como presença concreta, promovendo o abandono de uma produção de sentido mediada, pré-determinada e indiferenciada, em benefício de uma reflexão sobre a insubstancialidade do evento, e sobre uma noção de comunidade heterogénea.
Pegando no exemplo anterior e tendo em mente as imagens por certo vivas do ano de 2003, aquando da entrada das tropas norte americanas em Bagdad, não é difícil pensar que talvez nunca tenhamos sido modernosv nem que algum dia se tenha deixado de acreditar que há espíritos a habitar os objectos, e de nas esculturas haver, vozes que importa saber quando calar e outras que importa aprender a ouvir. De quase objecto a parte sujeito, a escultura contemporânea transporta a possibilidade imanente da acção critica.vi

De regresso, o subterrâneo é então esse lugar onde o invisível se torna audível, onde toda a força corre sem medida e se distingue do apresentável, do bonitinho, do giro, onde por necessidade se constroem utopias, sempre interiores, onde se agarra o desejo como quem, em nome próprio, cuida de alguém. Lugar de gesto livre, é reflexo adequado das possibilidade que a escultura contemporânea promove na sua relação com o corpo e com a palavra, e através da qual a acção pode ganhar propriedade. A forma directa com que os processos escultóricos alteram o real, adequa-se à necessidade de acção critica individual e constituem estratégia, de resistência política ao facilitarem ao sujeito contemporâneo, a possibilidade de ser actor em voz própria. Por fim, é importante ter em conta que ao falarmos do global , estamos necessariamente a subscrever a uma lógica antiga segundo a qual, uma escala maior, universal, objectiva e (aparentemente) neutra, é melhor. Num período em que a razão não é actuante enquanto princípio de coesão, é necessário pensar de acordo com uma escala local, subjectiva, diferenciada, e articular a forma actuante com que o conhecimento associado à produção de sentido, ao permitir a re-politização do sujeito, oferece resposta à presente falência institucional. É com alguma ironia e um pouco de auto-comiseração, que penso no facto da maioria dos trabalhos apresentados, terem sido produzidos numa pequena garagem, claro, subterrânea. Fará então algum sentido concordar para poder dizer, que estas são esculturas de garagem. Em relação à cor, apelo ao vosso sentido de responsabilidade.

 

i “ How can you see the darkness ? “ BLANCHOT, Maurice. (1993)The infinite conversation. Mineapolis : University Press
ii “The better new work takes relationships out of the work and makes them a function of space, light, and the Viewer´s field of vision”MORRIS, Robert. (1966) ‘Notes on Sculpture part 2 ‘ HULKS, David. POTTS, Alex. WOOD, Jon. Eds (2007) Modern Sculpture Reader. Leeds : Henry Moore Institute. pp 238
iii “Participation in the social is, indeed, most often organized through rites of sharing open secrets. In capitalism, as Karl Marx observed, the secret is the abstract value of value, which in a complex exchange economy, is essentially empty. “ VERWOERT, Jan. (2009) ‘Secret society. Cracking the codes of conceptual art’Frieze (2009) nº 124.pp 135
iv “The problem with the dominant models in cultural and literary theory is not that they are too abstract to grasp the concreteness of the real. The problem is that they are not abstract enough to grasp the real incorporeality of the concrete”in MASSUMI, Brian. (2002) Parables for the virtual. Movement, Affect, Sensation. London : Duke Universiy Press. pp 5
v Definição sugerida por Bruno Latour, particularmente desenvolvida na publicação “Nunca fomos modernos “. LATOUR, Bruno. (2006) We have never been modern. Harvard : Harvard University Press
vi Leia-se a propósito o seguinte : “O seu ( Henri Lefebvre ) sugestivo comentário acerca do monumento, é precedido de uma discussão similar acerca de outra forma urbana, a rua, por um lado encontra-se sob o domínio da ‘organização neo-liberal de consumo’ e o seu respectivo ‘espectáculo de objectos’, por outro, é um lugar vivo, potêncialmente caótico, que origina um teatro espontâneo e acontecimentos revolucionários.” HULKS, David. POTTS, Alex. WOOD, Jon. Eds (2007) Modern Sculpture
Reader. Leeds : Henry Moore Institute. pp 297 

Publicado a 16 de Setembro de 2009