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very contemporary
JORGE LOPES
Jorge-Lopes,-very_contemporary,-2010,óleo-sobre-linho,-99x90-cm

very contemporary, 2010, óleo sobre linho, 99x90 cm


O princípio da reminiscência
 

Contemporâneo (Lat. Contemporaneu),
adj. e s. m.
que ou aquele que é do mesmo tempo,
da mesma época,
especialmente da época em que vivemos,
coevo.

Dicionário Universal da Língua Portuguesa

Manda a já antiga tradição conceptual que um título seja todo um programa. Em muitos casos, que nele se concentre tudo, o título, a obra e o mais. Convém ter isto presente quando travamos contacto com a mais recente série de pinturas de Jorge Lopes: «very Contemporary», uma designação tão abstracta e, simultaneamente, tão concreta como as próprias pinturas que a compõem.
Na verdade, a palavra contemporâneo é completamente central no léxico da arte do presente e, ao mesmo tempo, é a mais problemática das suas congéneres coevas.
Ao contrário da época anterior, que se via a si própria como Moderna, o que corresponde a um programa estético-ideológico amplo mas, ao mesmo tempo, identificável nos seus contornos gerais, Contemporâneo, exprime, simultaneamente, um excesso de sentido e uma vacuidade. É uma palavra demasiado polissémica e, por isso, à beira de perder qualquer significação.
Nesse sentido, ela é também um símbolo de um tempo incaracterizável, onde nenhuma síntese é possível, nenhum «zeitgeist», nem nenhuma tendência se impõe às demais como aquela que legitimamente exprime a condição da arte do seu tempo.
Isto faz com que uma expressão como «Very Contemporary» seja, paralelamente, uma inevitabilidade e um absurdo. Desconfio que seja por isso que Jorge Lopes a utiliza. Como uma ironia que revela uma desconfiança essencial em relação aos próprios sistemas de validação que actualmente fazem do caos um regime de possibilidades largamente arbitrário e, por isso, potencialmente autoritário.
Essa constatação não significa necessariamente um regresso ou uma nostalgia do passado, mas implica um ponto de vista histórico sobre a pintura. E aqui talvez seja preciso contornar o raciocínio silogístico de Joseph Kosuth que afirmava que «Se questionarmos a natureza da pintura, não poderemos estar a questionar a natureza da arte. Isso acontece porque a palavra arte é geral e a palavra pintura é específica ».
Na verdade, a pintura de Jorge Lopes corta este pressuposto ao meio na medida em que olha de forma completamente oblíqua para a história (sem a ortodoxia revivalista de alguma pintura abstracta que por aí se pratica), ao mesmo tempo que aceita o facto de ser feita dessa história, de ser um seu ponto de chegada mas não como se de um ready-made se tratasse.
Convém não confundir esta atitude com o anything goes que habitou o chamado regresso à pintura durante os anos oitenta. Poucas palavras são tão estranhas a esta pintura como a palavra «regresso», mas ela conduz-nos a uma questão importante na obra de Jorge Lopes: a da sua relação com a memória. No caso, não se trata tanto de a pintura fazer o registo de uma consciência da memória visual individual ou da sua história colectiva, mas de a pintura se abrir à memória enquanto mecanismo gerador, instável, perturbador e que, na sua aparente desorganização, denuncia uma qualquer ordenação da realidade que se queira impor.

Quer isso dizer que a pintura de Jorge Lopes é um lugar onde se abrigam reminiscências, despojos e coisas que aparentam estar ainda a acontecer, como se se tratasse de matéria que ainda não encontrou ou está à procura de ser  linguagem, sentido reconhecível, experiência entre a indecifração imediata e a partilha lenta. Ela não é, pois, recordação, se entendida como uma contemplação do passado, mas sim princípio activo. Pode mesmo estabelecer-se um paralelo entre esse mecanismo de sobrevivência e transitoriedade mnemónica, aplicada à prática da pintura, e a teoria de Aby Warburg sobre a sobrevivência histórica das imagens na medida em que através da pintura, Jorge Lopes lhes encontra uma pós-vida (Nachleben).
Na verdade, se podemos dizer que esta pintura é tecnicamente abstracta, seriamos mais rigorosos em reconhecer que ela nos transporta para um lugar de latência onde assoma o artifício visual das sociedades pós-industriais, as pulsões sexuais e os ecos do mundo da arte, que também são as circunstâncias do artista. Todas estas dimensões nos surgem como um feixe, uma superfície quebrada que não é necessariamente uma imagem, mas sim a forma visual de uma perturbação.
Daí que, no caso de Jorge Lopes, talvez pudéssemos adulterar a célebre frase de Marcel Duchamp «Dumb as a painter» e dizer, «desamparado como um pintor», na medida em que o pintor é aqui, tal como em geral o pintor contemporâneo, aquele que se relaciona com as imagens como alguém que estivesse parado no meio de um rio tentando agarrar a água que passa.
Na impossibilidade de cumprir tão desproporcionada tarefa, cada pintura transforma-se numa superfície habitada por pequenas fulgurações, num campo magnético onde se ouvem ecos, acumulações de presenças, sinais, palavras ou frases que deixam ver uma paisagem mental plena de irregularidades e sinuosidades.
E é neste particular que a pintura de Jorge Lopes define o seu núcleo essencial. Porventura contaminado pela cultura alemã, e por reminiscentes valores românticos, o artista tende a materializar em imagens da natureza aquilo que possui uma proveniência mental e cultural ainda que o resultado desse processo seja uma imagem estilhaçada do ponto de vista representacional e, nesse sentido, um mero rumor do mundo visível.
É por isso que nestas pinturas, a ideia de paisagem se eleva no espírito do observador como uma estrutura reconhecível para além da abstracção, como uma espécie de irregularidade rica (algo como aquilo a que os românticos chamavam o pitoresco) ao mesmo tempo que se desvincula dos princípios miméticos a que habitualmente vem associada.
O mesmo se poderá dizer da sua relação com a linguagem verbal que faz a sua aparição em vários destes quadros e que conserva uma condição de signo (reconhecível e legível) e ao mesmo tempo é assimilada enquanto inscrição que possui forma e cor.
A combinação destes ingredientes resulta numa pintura áspera ao olhar, que cultiva os desequilíbrios e a impureza, nos seus processos de gestação e de recepção, não fazendo concessões à formatada e hipnótica suavidade da «imagerie» contemporânea, dominada pelos dispositivos televisivos e de produção virtual das imagens. Mas também isso ajuda a fazer da pintura de Jorge Lopes o que ela é: um lugar de risco.

Lisboa, Janeiro de 2010
Celso Martins

Publicado a 29 de Janeiro de 2010