VITA BREVIS
Fabrizio Matos
O caçador
Deste lado do mar existem também os vulcões, embora a sua origem não esteja nas profundezas, mas no que está a flutuar à sua volta. Eles têm do seu lado o tempo, e a gravidade. Aliás, é relativamente simples encontrá-los nas grandes salas e acervos; estão ocultos debaixo das mesas, dentro das gavetas, nas prateleiras, e praticamente em todos os cantos. Dificilmente poderão amedrontar uma população pelo seu tamanho, ou pelo fervor dos seus murmúrios. A sua ameaça pertence a outro género; é quase invisível. Trata-se então daquilo que se dissipa com o sossego: o inevitável.
Fabrizio Matos é um coleccionador de vulcões, e o pó que os materializa é o seu objecto de estudo. Para conseguir chegar até eles, não lhe é preciso atravessar grandes distâncias, nem empreender aventuras de ultramar. Para compreendê-los verdadeiramente, que é o que interessa, tem de se assumir o controle do mundo donde eles vêm. É justamente por isso que irrompe em prédios consagrados a organizar e a catalogar universos congelados. Ninguém acharia estranho que os objectos que lá moram forem sujeitos, no inicio, a um escrutínio minucioso, contribuindo assim com informação de um valioso cariz cientifico. Neste tempo, e na melhor das hipóteses, alguns desses seres que nalguma altura arrastavam-se na terra, nadavam nos rios, ou até voavam, são apenas expostos por trás de um cristal, e qualquer pessoa curiosa pode lá ir visitá-los. Atrapalhado numa mistura de tristeza e admiração, o Fabrizio contempla uma dessas criaturas ingénuas, cujo olhar imóvel parece, subtilmente, devolver-lhe o gesto. Não obstante, é aqui onde descobrimos a ponta do iceberg; o cimo do vulcão. O resto há de estar mergulhado em caixotes e noutro tipo de receptáculos, condenado a um ocaso preguiçoso, e ainda pior, sem testemunhas. Esta obsessão por entrevir, se calhar não a sua origem, mas o indeclinável futuro das coisas, é o que o têm levado a reproduzir estes espaços, e a combinar as suas próprias compilações. Nesta pesquisa, consegue reunir um grupo de pessoas – enroupadas em límpidos mantos de um certo museu – prontas a maquinar uma coreografia macabra: fazer levitar uma besta. Mas o senhor Matos não fica satisfeito com isso, e leva a situação até o limite. Desprovidos do seu nome, alguns corpos que pudessem parecer-nos conhecidos, oscilam no ar, circundados por figuras que, como se por um instante soporífero passassem, tivessem esquecido o que está a sua frente. O que esses corpos insondados realmente eram, os sonhos que eles tiveram, ou a língua em que eles conversaram, tudo isso parece ter sido esvaziado; examiná-los portanto era uma tarefa obrigatória.
Agora é que nos encontramos todos ao mesmo nível: somos todos borboletas, somos todos crocodilos, ou qualquer outro bicho preso pela nostalgia, no gabinete do tempo. Na verdade, sabemos pouco do verdadeiro propósito desta análise. Como habitualmente acontece quando começamos a acumular promessas, temores, barulhos, ou até amores, o seu caminho poderia ser uma vontade que nos ultrapassa; um artifício. Esta impossibilidade, por consequência, converte-se logo numa coisa irresistível.
No final do dia, é muito provável que nós próprios fossemos igualmente objectos de estudo; que estivéssemos ainda suspensos no ar, sem conhecimento nenhum, de fazer já parte da colecção do Fabrizio.
Tempo depois, juntamente com ele, juntamente com tudo, faremos também parte, de mais um vulcão.
Humberto Duque