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S/Título, 2005, técnica mista s/papel, 100x70 cm

S/Título, 2005, técnica mista s/papel, 100x70 cm

O rapaz escondia os desenhos no tampo da mesa. Primeiro trabalhou sobre essa mesa. O tampo foi uma superfície de madeira, lisa. Pingos de tinta caíram: negro e branco e mais negro e, depois a purpurina de um pequeno frasco que se entornou, deu a esse tampo de mesa a ilusão de um jardim de talha. Uma noite alguns desenhos ficaram sobre a mesa. Concluídos, quase todos. Troncos de árvores, grossos troncos de árvore desenhados a negro. Árvores de tronco nodoso, as folhas de papel guardavam-nas umas sobre as outras. Numa sucessão de grossos troncos davam o aspecto de um velho bosque de árvores centenares. Tuias do Japão e da China, o negro da tinta e do carvão conseguiam com breves pinceladas de verde e de azul a floração da primavera. A escala permitia uma visão de árvores de grande porte, nove a quinze metros e não era necessário um olhar botânico para abarcar, no tamanho real das folhas, a irreal lonjura das árvores desenhadas. As folhas espinhosas e de brilho dos Ilex aquifolium coroavam-se com os frutos vermelhos. A árvore do paraíso com o reverso das folhas cobertas de salinidade – conseguia-o fixando a poalha acidulada de um branco nacarado – , os frutos ovóides abriam em ferida a doce seiva. De um tronco ressequido de uma magnólia, só o olhar de um jardineiro saberia que da morte vegetal desse velho tronco algo iria rebentar, como sucedeu na folha do desenho, uma haste nova, ramo que na extremidade trazia duas flores brancas, de um branco sujo – o rapaz depois de as pintar com um tom lacado de pastel sentiu a fragância do cheiro. As folhas caducas do castanheiro – e como se percebia ir bem alto em perspectiva, se fosse em bosque de verdade tocaria os vinte metros – , cobriam o chão, cinzas e negros davam um chão fértil de turfa, de dentro dos ouriços os frutos pediam para ser colhidos num tardio início de novembro. O louro cerejo sempre verde (negros e cinza somente davam esse verde) cobria-se de flor branca. E a flor solitária da camélia exigia cor: vermelho intenso e rosa e rosa e branco mesclado, e só branco cobria folhas e folhas de papel. Os sentidos do rapaz estavam por inteiro no jardim escondido, nos escondidos desenhos. Sobre a mesa, uns sobre os outros os desenhos ficaram uma noite sobre a mesa. Havia luar e azul, um azul forte ferido pela lua. O rapaz queria os desenhos totalmente para si. Eram o seu trabalho. O seu bosque, o seu jardim. Primeiro, lançou entre uns e outros espessa cola. Depois, lançou pedaços de gesso sobre o amálgama de pasta de pastel. Com um pouco de sorte, líquenes e musgos haveriam de deixar cair os seus esporos nos espaços vazios entre as árvores. O tampo da mesa, a mesa por inteiro constituía a essência da pintura, a concentração definitiva da beleza, a energia e a simplicidade do bosque do seu jardim.

João Miguel Fernandes Jorge

Publicado a 17 de Março de 2006

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terroristkitty2best

Artistas: Filipe Rocha da Silva, Gustavo Sumpta, Jane Gilmor, João Pedro Rui
Comissários: António Caramelo e João Fonte Santa

A PLATAFORMA REVÓLVER tem o prazer de apresentar “Boa noite, eu sou a Manuela Moura Guedes”, exposição colectiva com trabalhos de Filipe Rocha da Silva, Gustavo Sumpta, Jane Gilmor e João Pedro Rui.
A exposição apresenta um filme (Filipe Rocha da Silva), arte performativa (Gustavo Sumpa) e fotografias (Jane Gilmor e João Pedro Rui).

Publicado a 16 de Março de 2006

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Tudo sobre rodas
PASCAL FERREIRA
auto-orientação, 2006, duas cadeiras siamesas de madeira, legos, MDF policromado e alcatifa sintética

Auto-orientação, 2006, duas cadeiras siamesas de madeira, legos, MDF policromado e alcatifa sintética

Tudo sobre rodas

Apesar de percepcionarmos o espaço que nos rodeia e as prováveis consequências do seu envolvimento, tendemos, por diversas razões (muitas delas misteriosas) a resistir-lhe, como se de uma redoma necessitássemos de construir à nossa volta para nos protegermos das agressões vindas do exterior.
Felizmente, há alturas em que quando solicitados, sentimo-nos encorajados em quebrar essa mesma redoma, e com audácia explorar o mundo novo. – É tempo de deixar o que está para trás e “fazermo-nos à estrada”. O mundo exterior passa a revelar-se cada vez mais sedutor à medida que o consciencializámos. É entretanto nessa altura que resolvemos que caminhos percorrer, quais as direcções a tomar.
Quando em vez, adaptámos mecanismos de orientação, porque nos sentimos algo perdidos, confusos perante tanta informação diante dos nossos olhos.
Reorientados, tomamos então opções! É quando queremos deixar a nossa marca, porque descobrimos terreno fértil para investir. Invadimos o espaço encontrado e plantámos a nossa árvore, ali, junto das outras, para um dia mais tarde colher frutos.
Entretanto, ao longo da viagem, encontrámos um outro, que também navega à procura do seu rumo. Estabelecem-se pontos de contacto. Construímos uma ponte de ligação, maior parte das vezes frágil, porque tendemos a desconfiar. Contudo, permitimo-nos a que esse outro nos venha visitar, porque lá do fundo, queremos sempre é partilhar.
E cá vamos de novo por aí, “com a casa às costas”, de lugar em lugar, contactando este ou aquele, descobrindo isto ou aquilo, e onde claro, tudo pode acontecer, e acontece mesmo!
A viagem continua e sentimo-nos bem, porque não estamos só…

“Tudo sobre rodas”, como diria o meu novo amigo.

Pascal Ferreira

Publicado a 10 de Março de 2006