
S/Título, 2006, óleo s/tela, 200x190 cm
A PINTURA DO PONTO DE VISTA DO PINTOR
1. A pintura como auto-estrada de sucesso ou árdua senda? Pergunta nada retórica face a um dos pintores mais interessantes da década de 80 e um dos mais difíceis de classificar, de seguir e de ver mediaticamente consagrado.
Não podendo ser tomado como resposta (pois é um envelhecido lugar-comum nos discursos sobre os artistas e a sua arte) é certo que a pintura serve a Manuel Gantes como modalidade de auto-conhecimento e conhecimento do mundo. Nunca há nela nada — nem nos temas nem nos modos — de ligeiro, gratuito, displicente ou distraído; e sim, uma mistura de melancolia e ironia, de delicada atenção e distanciamento emocional, de dúvida íntima e saber estruturado. Algumas formas infantis (representação de bonecos), algumas estratégias narrativas (construídas com essas formas ou com ficções animais, por exemplo, formigas) remetem para encenações onde a estranheza pode nascer do banal ou ser o banal a fonte dessa mesma estranheza. Manuel Gantes pratica uma pintura trabalhosa: como quem pensa devagar e não evitando obstáculos, investindo sobre eles ou inventando-os onde não os encontra. É uma pintura de camadas sobre camadas de matéria, de formas que se inscrevem e se recobrem, se decidem e emendam, se delineiam e se desfazem, que nascem de dentro e morrem dentro da pintura (e não em sobreposição a ela ou debaixo dela), de cores que se misturam noutras cores perdendo ou ganhando luminosidades e contrastes, alcançando, ao final, climas cromáticos responsáveis por parte da encontrada estranheza das suas imagens.
2. Sigo, com as intermitências que o próprio artista nos proporciona, a pintura de Manuel Gantes e percebo nela uma das diacronias e representações mais características do nosso tempo; obra que revela a nossa condição contemporânea e não disfarça a impossibilidade em darmos honesta resposta assertiva aos problemas que (na arte, na política) se nos colocam.
Decisão e indecisão, nomeação e obscurecimento são pares que percorrem Manuel Gantes transformando a sua pintura num campo de tensões indisfarçáveis. A realidade actual não é um cristal, nem sequer uma massa disponível para ser modelada: é um caldo onde vogam elementos contraditórios, difíceis de ligar entre si por raciocínios logicamente estruturados ou simples relações de causa-efeito. Manuel Gantes não interroga a realidade, interroga-se, partindo de imagens disponibilizadas pela história (passada ou quotidiana, erudita ou popular) perante essa realidade — e devolve-nos essas interrogações em novas imagens, intensamente reelaboradas através de um longo e delicado processo. O tempo é, aliás, dimensão essencial ao entendimento da sua obra: tempo que as imagens escolhidas já possuem na fonte e tempo que o seu (re)fazer lhes acrescenta. A lentidão desse tempo interno confronta a velocidade do nosso tempo histórico e explica, em parte, a posição excêntrica de Manuel Gantes no sistema artístico.
3. Como é que a paisagem, explorada nesta série de pinturas, pode representar a realidade objectiva e subjectiva do mundo e servir os propósitos expressivos de Manuel Gantes? É a paisagem com estatuto de género maior (conquistado, em tempos muito diversos, por Giorgione, Poussin e Cézanne) que aqui importa: admitindo a alegoria e a História, a metáfora e a mitologia.
Embora, em relação a estas imagens, ocupemos uma posição privilegiada, voando tão alto sobre elas que quase intuimos a curvatura terrestre, pouco nos é dado (a) ver: são paisagens em vazio, por defeito e por excesso: tudo o que as preenche ou é vago ou excedente, transbordando da imagem (para dentro, para cima ou pelas margens), tudo se cobre de névoa azulada ou é azulado ou é a névoa mesmo que surge como matéria de representação. Estamos sob o signo dominante e nocturno da água e o que se nos oferece encena uma ocultação de informações: deliberadamente afundadas sob camadas posteriores de pintura, como sob efeitos de uma inundação; evaporadas pela utilização rara que MG faz da perspectiva atmosférica, dada na luz leitosa da madrugada ou na cinza do escurecer; sugerindo uma regularidade de formas capazes de estabelecerem padronizações para lá dos limites da tela.
Extremas de campos agrícolas e malhas urbanizadas, meandros fluviais ou nós de auto-estradas colocam-nos entre a inevitabilidade da grelha compositiva subjacente à Pintura e a dominante determinada pelo delírio do “entrelac” arcaico ou rocaille (de que a forma ovalada é apenas variante mais simples mas não menos complexa e significativa). Podemos então referir o sentido de unidade universal suposto em ambas as lógicas: na estruturação ortogonal e na liberdade da curva se encontram feminino e masculino, ar, fogo e água, força criativa e força disciplinadora.
No final, estas paisagens revelam-se como serpente-Uruboros, que a si mesma (e tudo o resto) metaforicamente devora: as imagens pintadas e o seu significado; o pintor e o espectador, cujos pontos de vista se confundem e sobre ela se precipitam em conjunto como Ícaros em queda.
João Lima Pinharanda