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André Banha, na conversa que teve comigo sobre os esboços deste trabalho a ser mostrado em Janeiro de 2008 (VPFCream art gallery), lançou várias hipóteses de título, todas muito próximas e todas carregadas de constante identidade quanto ao objecto a instalar e quanto a uma emotividade que essa mesma arquitectura prendia. «Guardei para ti o pôr-do-sol.» «Guardei o pôr-do-sol.» «Guardei para ti o último pôr-do-sol.» «Segurei para ti o último raio de luz.» Foram títulos possíveis que lhe ouvi. Só hoje, e com a montagem em execução, soube o exacto título: Segurei-te o Pôr-do-Sol.

A casa está construída dentro da casa. Em madeira de pinho. Em estreitas e longas fasquias de pinho de dimensões variáveis. A casa foi erguida tábua a tábua, segundo um desenho em que a constância da identidade referencial (a arquitectura — chão, tecto, paredes, frestas, vãos de abertura, ângulos de flexão sobre o seu próprio corpo de casa) e a constância das propriedades essenciais (o espaço, os rasgos de luminosidade, os nódulos da madeira fixados ou a alastrarem como se fossem ferida, a penumbra e o derradeiro raio do pôr-do-sol, que alguém — o próprio escultor — guardou, segurou, aprisionou para outro alguém) se condicionam reciprocamente.

Transformar as duas salas da galeria foi a proposta. Estabelecer nesse espaço a natureza da casa. Natureza que corresponde de um modo exacto à da escultura a erguer e, também, à da consumação da sua subjectividade. Que é aquela que, Segurei-te o Pôr- do-sol, no final encerra. Após termos percorrido o corredor que sobre si mesmo se dobra e, para além deste, termos sido lançados — desde a boca de um paralelepípedo — na sala onde dominam outros dois. Cerradas figuras geométricas, volumes que as fasquias de madeira organizam de modo a que a independência das contingências que assistiram à feitura da arquitectada casa se verifiquem de acordo com a intenção de um «guardei para ti o pôr-do-sol».

A luz irrompe (e por vezes quase se decompõe) por entre as frestas, por entre os brevíssimos espaços que ficam na justaposição das barras de pinho. Para além das suas condições de ocorrência, os raios de luz traçam. Percorrem em obliquidade o campo do criado corredor ou invadem o território maior da sala. São realidades de referência que percorrem a escultura instalada. A esse transporte de luz, que é um fluxo de fotões, como ao movimento molecular que é o calor, se devem os fenómenos externos que integram, de um modo tão complementar, a harmonia deste trabalho. Primeiro, ao possibilitarem a constante interferência da luz natural (ou, de uma forma alargada, de qualquer foco luminoso exterior às paredes construídas do habitáculo escultura) e depois, pelas sensações olfactivas provocadas pela intensidade das resinas da madeira, devidas à acção do calor.

Aquele que percorre esta casa de André Banha sente, por entre o percurso que lhe é oferecido pela como que articulada organicidade das madeiras, um apoio directo ao funcionamento do seu próprio corpo. A casa tende a defender o corpo e o ânimo do visitante, enquanto este a ela se adapta para que tudo corra bem. Claro, que não saberá o artista enunciar o que seja esse tudo, que se vai (ou se irá) inscrever dentro de um circuito preservado pelas acopladas tábuas. Quando o percurso conduzir os passos até aos dois paralelepípedos que irrompem das janelas onde estão instalados, das suas tábuas com ranhuras a luz liberta-se como uma realidade maior do que a própria volumetria dos sólidos. E se, ao longo da passagem, do serpenteado corredor, um ou outro raio de luz se filtrava, na presença dos corpos sólidos avançados, esse descer ou
declinar da luz toma a realidade de um estrato mais alto. Como se esse raio de luminescência fosse propriedade vinda da forma geométrica de um grande corpo celeste. Todavia, Segurei-te o Pôr-do-Sol corresponde a uma situação de mínima energia potencial.

Existem objectos que existem pouco. Não a escultura, a arquitectura casa erguida com os desperdícios de madeira. Refiro-me ao derradeiro raio de luz, a que corresponde a última luminosidade do dia. Esse pertence ao tipo de objectos que não resiste às flutuações da incerteza do mundo. Transforma-se. Desaparece. André Banha insiste em querer guardá-lo, em querer segurá-lo. Em querer manter-lhe a sua identidade entre os objectos vivos.

Dois desenhos («Sem Título», 2007, 100 x 100 cm, viochene e spray sobre papel) acompanham a arquitectura da casa. Face a eles, desenhos projectados de casas, a escultura toma a representação real. Enquanto sob os desenhados sólidos acoplados se descreve a forma e os factores que idearão as bases de hipotéticas edificações escultóricas. Há nestes desenhos uma presença de um juízo auto-crítico, que de um modo apriorístico vai envolver todo o resultado final de ordem estética que possa a imagem encerrar.

Nesse a priori teremos que observar (elementos que vão necessariamente encontrar-se na execução efectiva da escultura) factores de desempenho rigoroso: como a delimitação do espaço; e a massa que corresponde à amplitude da nossa contemplação quer do vazio íntimo da casa quer do desenho. Ainda dentro desta concepção
está presente a evolução / mobilidade dos corpos geométricos desenhados. Uma modalidade de delimitação que traz consigo factores internos repercutivos: a regularidade, a proporção, a harmonia e mesmo, em alguns momentos, a simetria.

Desenhos de volumes. Corpos sólidos que se dispõem a deixar ir o ver além das suas faces na exacta cor da madeira. Uma ou outra face ausente remete para um espaço onde guardar o último raio do pôr-do-sol na plenitude de uma câmara vazia.

A percepção da matéria contida num raio de luz foge à sua impenetrabilidade. Mas é exactamente essa impossível revelação sensível do espaço que André Banha vai querer segurar. Para depois levar essa luminosidade às volumetrias que criou e dentro das quais nos convida a sermos habitantes. O espaço arquitectónico, objectivo, está edificado com desperdícios de madeira, segundo as dimensões variáveis que o território onde a escultura se instalou permitiu. Dele surgirá a imagem final, a de transformação, a de ânimo. Aquela exacta imagem que fará confundir a tensão ou a plenitude do espaço a percorrer ou o ritmo do curso de uma série de tábuas sobre outras (ou somente justapostas), como se entre si conspirassem num duelo de pleno e de vazio. Imagem que irradiará como um fluxo no instante em que segura para a própria obra criada o pôr-do-sol e conduz, em modulação, (ess)a última luminosidade através de todas as ranhuras, através de cada fissura existente entre uma e outra fasquia de madeira.

Deste modo, ao guardar o último raio de luz, o quotidiano de profundidade da casa acresceu em grandeza. O que quer dizer: o espaço da escultura Segurei-te o Pôr-do-Sol não é somente um espaço englobante aplicado à sua superfície. Segurei-te o Pôr-do-Sol habita o seu exacto lugar e estende-se até ao horizonte continuamente sustido pela construtividade da emoção.

Miguel Fernandes Jorge

Publicado a 21 de Janeiro de 2008