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Rif, 2007
MARTA SICURELLA
S/Título, 2007,c-print,20x20 cm

S/Título, 2007, C-print, 20x20 cm

Quando para lá de um muro, o que nos absorve é apenas um azul intenso de céu e esse ecrã lumínico se sobrepõe a tudo pela sua imensidão vazia mas avassaladora, é quase certo que estamos no sul. Quando as paredes são de cal, os pátios se sucedem aos terraços e a tez é escura, asseguramo-nos de que estamos no sul.
RIF é o nome duma zona montanhosa ao norte de Marrocos, por onde a artista viajou em Agosto de 2007. Sabemos estar diante de impressões de viagem, que não vemos como documentos porque o olhar que as isola é formalmente poético e desinteressado: deslumbrado com as cores, com as esquinas, com a passagem por algumas pessoas e com as surpresas triviais de certos caminhos.
É o sob o signo da deambulação e da entrega ao imprevisto e à possibilidade de errar (no duplo sentido da palavra), que surgem estas imagens. Para a artista, que não fotografava há algum tempo e cujo trabalho fora sempre mais calculado e quase sempre encenado ou preparado, a decisão de fotografar sem racionalização prévia equivaleu a uma experiência de libertação e de maior expressão da intimidade: aquela que os olhos estabelecem com outros sentidos perante os territórios novos que, de repente, os interpelam em viagem.
Talvez a viagem seja, por isso, a condição privilegiada por tão grande número de fotógrafos – o desafio permanente de decifração e fixação que uma mobilidade e mudança voluntárias mas também permanentes lhes colocam.
Mas esta entrega espontânea à surpresa dos lugares não varreu das imagens elementos que existiram sempre no universo criativo da artista: a quietude de um lugar estranhamente iluminado; o trabalho subterrâneo e secreto da sombra e da obscuridade ou de um qualquer privilégio restrito de luz; o intervalo entre os gestos que um grupo suspende na expectativa das reacções por vir; os fios que se enrolam e se estendem no sítio infinito de uma metáfora narrativa; a singularidade de um contorno desenhado por um excerto natural, arquitectónico ou objectual.
A esse olhar, que afinal só se liberta para voltar a aprisionar-se em si próprio e no que lhe é intrínseco, Marta Sicurella acrescentou, no entanto, decisões e possibilidades novas: utilizou uma antiga Rolleiflex de médio formato, sem fotómetro e com entradas de luz não controláveis, que assumiu; recorreu a rolos fora de prazo arriscando infidelidade e estranheza cromáticas; quis que as imagens existissem sem nenhuma especial mestria técnica; mas quis sobretudo sentir-se mais próxima de si mesma ao aventurar-se nelas dessa forma errática e descomprometida.
Mar, montanha, mesquita, mercado, casa, jardim, aldeia, deserto, muralha, ermo, baía, muro, estrada… O percurso mapeado recolheu neles o ecrã quase imponderável de quem passou por eles sem peso na bagagem. O que ficou entre cada um foi fecundo afastamento, engano, aventura.

Leonor Nazaré

Publicado a 27 de Março de 2008

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Uma Combinação
ARMANDA DUARTE

marco-08-019

“Uma Combinação”

Armanda Duarte apresenta três trabalhos que estabelecem relações entre si. Já o próprio título da exposição, “uma combinação”, alude a esse propósito, mas também se dirige a relações não visíveis na exposição que estão na sua génese. O título, tanto remete para o jogo que se pode estabelecer entre as diferentes peças expostas, como para outro trabalho imediatamente precedente, exposto no Centro Cultural de Lagos, que se intitulava “A Reformada”. Este tipo de vínculos, que estabelecem uma relação em teia, são comuns no universo da obra da artista.

Se os projectos expostos na Plataforma Revólver remetem para o acto de combinar, de juntar coisas de origens diversas com o objectivo de formar um corpo, em “A Reformada” o que estava em foco era o traje que pertencia a uma memória do quotidiano da artista. Só a título de curiosidade, referia-se à padeira que, durante anos, existiu no seu bairro (o que, extrapolado, incluía todas as padeiras de bairro com uma profissão em fase de extinção), que se apresentava, na maior parte das vezes, vestida com uma bata sobre a combinação. Não se dirigindo directamente a este facto singular que poderia ser muito mais lato, importa, nas duas peças, frisar um certo anonimato do labor por detrás de um “uniforme quotidiano”.

Esta introdução, de alguma forma emblemática, serve para compreender o universo do trabalho de Armanda Duarte, que parte de princípios conceptuais que mergulham no seu quotidiano próximo. A artista constrói um universo sensorial que, mesmo apesar de ser inserido num quadro social, nunca se conforma com uma reacção imediata ou tentativa de representação simplista do real. O seu trabalho apela sempre a uma construção poética dessa realidade e ao discernimento de sentimentos universais partilháveis em qualquer contexto cultural. A artista inscreve-se no meio dos acontecimentos que geram a sua ordem poética apelando mais ao seu ser que à sua presença. Nessas circunstâncias, é difícil falarmos do seu trabalho a partir de uma perspectiva formal e técnica quando se olha para o conjunto da sua obra. Ela varia muito de trabalho para trabalho, com opções materiais e formais ao serviço da poética das ideias. Cada trabalho é um ciclo que está em contágio com o ciclo precedente e dando origem a outros por indução. Materiais, formas e expressão são convocados conforme as necessidades de cada projecto. O que resulta é uma interrogação sobre a possibilidade de uma representação do real mais complexa.

O trabalho que se apresenta, “Uma Bata e uma Combinação”, composto por círculos de barro que contêm água, resulta de várias referências. Da memória de uma viagem, em que tecidos enrolados ao lodo serviam para estancar e conduzir a turbulência da água da enxurrada, e parte ainda de uma lembrança dos vasos de flores que se perfilam nos pátios portugueses, nomeadamente dos pratos que reservam a água debaixo deles. No entanto o que conduz este trabalho não é tanto o retrato dessas duas realidades imediatas nem as questões socio-culturais implícitas mas a observação de um gesto de cuidado de manutenção com um valor mais amplo, universalista e abstracto. Para além da plasticidade do trabalho, o que se requer é a manutenção diária das formas circulares de barro. Este lado performativo é manifesto diariamente por cinco eleitos do seu círculo de amigos, denominados “Os Vigilantes”, título doutro trabalho exposto. Uma vez por dia, um deles passa pela galeria para verificação e manutenção da obra. Têm ao seu dispor, no próprio espaço expositivo – à vista do público –, todos os elementos necessários para os seus cuidados:
água para preencher os contentores, assim como uma tesoura e uma bata que pode ser retalhada para o caso de ser necessário vedar as gretas que se possam gerar nas paredes de barro. A enumeração dos elementos é uma das constantes na obra da artista que nos fazem lembrar a preocupação de uma objectivação do trabalho artístico fora de qualquer tentativa de transcendência.

Seria a presença dos vigilantes que daria, então, origem a um segundo trabalho a expôr na Plataforma Revólver. O projecto começou com a solicitação de um desenho em torno da idade de cada um dos participantes que, posteriormente, deveria enviá-lo pelo correio. Na sequência, a artista desenhou com um certo realismo cada um dos
projectos enviados para, depois, expôr numa prateleira. De certa forma, são cinco desenhos de desenhos explorando a sua tridimensionalidade. São igualmente a oportunidade de registar outras presenças. Armanda, neste como em outros trabalhos, tem abordado a possibilidade de uma comunicação dialógica entre ela e os assistentes. Esta prática vem de uma certa relação que a artista estabelece com o projecto em si. Cada projecto constitui-se como um enunciado que estabelece, à partida, uma ordem e uma perspectiva de desenvolvimento. Podem autonomizar-se seguindo as premissas muitas vezes de ordem lógica ou matemática. Daí que,
momentaneamente, possam estar à deriva, sob efeito de factores exteriores, que tanto podem ser outros sujeitos como outros factores de ordem natural. A organicidade que está, em geral, presente nos seus trabalhos prende-se, muitas vezes, a esta questão da sobreposição de acidentes decorrentes de um desenvolvimento natural das coisas. É como se a linearidade estabelecida pelo enunciado se prestasse a um espaço suficiente para o outro, ao imprevisível e ao disforme que lança o caos regenerador. No caso desta exposição, os contentores encontram-se à mercê das reacções do próprio material, assim como das intervenções dos vigilantes que os vão condicionar provocando diariamente transformações. Em outros trabalhos anteriores verificaram-se vários estratagemas de calendarização e de contabilização que eram sobrepostos a uma outra temporalidade marcada por transformações da organicidade dos elementos convocados.

No conjunto da obra de Armanda Duarte talvez importe referir o silêncio
que se constrói no seu entorno. É uma sensação que nasce da fragilidade, da minuciosidade e da discrição com que os seus projectos se apresentam ao público. A performance dos vigilantes, mesmo que diária, não antevê a necessidade de um espectador, a não ser ocasional. Contudo, o vestir a bata implica uma ideia de performance, e o vigilante individualizado incorpora todo o quotidiano laboral repetitivo que se perde num grande silêncio. Ou seja, o seu trabalho convoca o que no quotidiano há de mais anónimo e invisível. Associa uma consciência que ultrapassa a ausência de espectacularidade do quotidiano, intimando a discreta presença da singularidade.

Por fim, o último projecto, “60m3”, nasce de um jogo com o próprio espaço expositivo. Construído a partir de linhas que são estendias em tensão no espaço, procura-se criar um desenho aéreo que, de certa forma, contrapõe e cria relações com o lado terreno do outro extremo. O desenho desenvolve-se como uma simetria do outro lado do espaço expositivo e, como o seu próprio título indica, sublinha a abstracção e
a invisibilidade da matéria espacial, características de eleição sempre presentes na obra da artista.

Francisco Vaz Fernandes

Publicado a 26 de Março de 2008

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Desenho
JORGE FEIJÃO

S/Título, 2008, acrílico, óleo, tinta plástica cola branca e carvão s/papel, 100x100 cm

Sub specie aeternitatis

Wittgenstein numa conferência sobre ética, fala do desespero que sentia quando tentava dizer alguma coisa que verdadeiramente tivesse valor. Este desespero era o sintoma da dificuldade em fazer com que a linguagem dissé-se aquilo que ela nunca poderá dizer: o bem, o belo, a ética, a estética. Para completar esta imagem o filósofo, descreve esta tentativa em encontrar a palavra certa, a palavra que salva, como uma corrida desesperada contra as grades da nossa prisão.

Da metáfora de Wittgenstein toma-se a lição, ou aprofunda-se a evidência, que o humano é um ser numa prisão: preso à linguagem, ao mundo, ao campo visual. As grades desta prisão são constituídas pela experiência, a cada dia renovada, que o tempo tem um limite e o espaço é limitado. Nesta nova série de desenhos de Jorge Feijão existem duas prisões que não são para os nossos corpos, mas para a matéria, pulsional, erótica e muitas vezes grotesca, onde a arte vai buscar alimento. Matéria, em permanente metamorfose, que arde dentro das grafites, e invisível nas folhas de papel.

Nos outros desenhos também se experimenta o ‘estar-se preso’, aí o elemento de aprisionamento que impede a saída é o próprio mundo que, ao aparecer sub specie aeternitatis prescinde da nossa presença e assume-se como entidade regulada por leis internas de movimento: mas, neste caso, ficamos do lado de fora a querer sair do vazio, do infinito, do eterno e a querer entrar na plenitude mundana, na finitude, no tempo presente, na prisão que é o mundo. Este fez-se objecto de contemplação — por isso está pousado sobre um plinto —, ficou frio e o nosso amor só se pode expressar sob a forma de exercícios do olhar. Ver assim o mundo significa vê-lo como objecto só alcançável através da contemplação e dos exercícios mais extremos da espiritualidade.

Esta contemplação é paradoxal porque a visão sub specie aeternitatis tem na experiência do limite o seu primeiro sinal e na prática artística este é um território fértil. No caso de Jorge Feijão os seus desenhos começam por conhecer um primeiro limite na folha de papel, depois na figura e, depois, no seu próprio gesto. Por isso muitas vezes os desenhos parecem querer fugir da superfície, outras vezes transformam-se em nebulosos centros de acumulação de matéria e energia a que nada talvez possa corresponder. Muitos projectam sombras e transformam o ponto de vista do espectador em campo de escondimento, lugar a partir do qual só se podem ver vultos, sombras, fantasmas e nunca as coisas reais.

A cada desenho é o nosso olhar que, através da presença da negatividade introduzida pelas sombras e pelo sem forma, se vai purificando do excesso e, paulatinamente, construindo o local de onde se pode ver o mundo. O “biombo” de Jorge Feijão é um desenho-síntese porque corresponde ao reconhecimento da matéria humana como seres condenados a espreitar por entre as fissuras das camadas rochosas de que as coisas são feitas: ficamos sempre na sombra e mesmo a luz que recebemos é a que sobra do outro lado, aquela que é emanada pelo eterno que se esconde sempre atrás do “biombo”.

Nuno Crespo

Publicado a 23 de Março de 2008