
homem de lama revisitado, 2008, faiança policromada, 31x30x30 cm
O encontro amoroso de Cioran com Nancy Sinatra.
O filósofo e escritor romeno E.M.Cioran, tido com o último grande nome do pensamento trágico pessimista, escreveu que “ao que parece, o homem se deu os deuses por uma necessidade de se ver protegido, garantido – na realidade, por uma gana de sofrer. Desde que acreditou na sua multiplicidade, abriu espaço para uma liberdade de escolha, para evasões. Na sequência, limitando-se a um deus, passou a ser afligido por um suplemento de amarras e embaraços. Certamente não há outro animal que se ame e se odeie tanto, até o limite do vício, e que se daria o luxo de uma sujeição tão pesada. Quanta crueldade para com nós mesmos – unir forças com o grande Espectro e fundir o nosso fardo ao Dele! O único Deus torna a vida irrespirável” [i]. Essa pérola de humor da auto-comiseração poderia ser uma introdução a um ensaio sobre o pessimismo, revogando ideias desde a antiguidade de Diógenes, o cínico, até a filosofia trágico moral da tríade Schopenhauer, Nietzsche e Kiekegaard, para encerrar exactamente nas ideias desse último grande pessimista do século XX. Sua máxima “todos os seres são infelizes; mas quantos o sabem?” é, por si, uma exegese ao carpe diem.
Mas não se trata aqui de tecer elogios ao pessimismo, mas justamente o contrário disso: rir-se dele. Dito desta maneira, o curioso título “Três novas esculturas pessimistas, e uma não tão nova” poderia ser definido como uma 2ª parte das especulações filosóficas de Tiago Carneiro da Cunha. Neste entender a 1ª parte seria “Minha contribuição para a cultura e a natureza, título do catálogo da sua anterior mostra, afinal um título é enunciado daquilo que se pretende, ou não é? De todas as formas, ambos os títulos e ambas mostras trazem a violência como tema (ou motivação?) de um processo quase inalienável na civilização. ´É claro que sempre pode-se elaborar uma tese filosófica, sociológica ou psicanalítica sobre o “homo homini lupus”. Sim, existe um mito de que a violência está vinculada à animalidade e a natureza primitiva humana. Se assim o fosse, a anti-violência jamais chegaria a ser uma linguagem e estaria fadada a ser prisioneira eterna do grito inarticulado do canibal. Segundo o mito, a própria natureza implica em violência, e os seres humanos vivem ainda, pelo menos em sua maioria, no estado violento de natureza. Mas se o mito aborda os seres humanos, o que se tem de facto em mente é uma parte da humanidade e não sua totalidade? O mito da humanidade violenta desenvolveu-se ao longo da história das civilizações, e animou até mesmo projectos utópicos humanistas, afinal quantas mortes resultaram na aplicação de políticas de renovação? Não um lobo na pele de cordeiro, mas sim um primata movido ao instinto desenfreado e com uma ferramenta, seja um tacape[ii], uma faca, um porrete, uma arma qualquer, na mão. Nesta perspectiva somos todos primatas, afinal. Mas a cultura sobrepõe-se a natureza e dominamos nossos instintos mais selvagens para gerar uma outra história possível. Como a arte que transforma a violência em simbolismo. O macaco seria um simbolismo e não um índice da violência.
Vejamos que o macaco (ou o primata) é uma figura dominante na obra de TCC, ao aparecer sob as mais diversas formas: buda, homem com sombreiro, esfinge, etc… Penso que sua mais singular aparição é a do homem-macaco no vídeo Low attention span / high curiosity rate’ (portrait of Peter Elliot (40´). Neste exercício estilístico de interpretação, o artista estava interessado na aparente contradição da função do artista como um ‘especialista’, algo que exige alta atenção, em representar um estado de ‘baixa atenção’, numa analogia directa e declarada da referência ao videoarte nos anos 60/70) com as artes plásticas. Para ele era, em certa medida, uma espécie de mapeamento de alguns limites das suas próprias ambições românticas de exibir um artista ‘possuído’, em transe mediúnico, catártico[iii]. Mas por que o macaco? “Mas o macaco tem também essa mistura de humor, sacanagem e violência. E também trópicos, de terceiro mundo, que somo nós aqui no Brasil. De toda maneira não são só macacos: tem mendigos, bandidos e policiais também. Suponho que o meu jeito de entender o humanismo é curtir o mínimo denominador comum”[iv]. Apesar de não estar na mostra “Três novas esculturas pessimistas, e uma não tão recente”, o macaco é recordado na postura animalesca de algumas figuras que apresenta.
A mostra inicia-se com uma figura de convite: Bandido, cristal rosa (2005-2008). Pertencente a série de esculturas em resina de poliéster, material que utilizou na totalidade dos seus macacos. O altivo cavaleiro tem a pose dos bandidos das favelas cariocas; ou quem sabe é um revolucionário chiapa sob o comando do Capitão Marcos, ou é mais um “mártir” de um gang da Jihad. O bandido é para nós, contudo, uma figura simpática e graciosa e parece não oferecer perigo. Sendo a “uma não tão nova”, esta obra é o elo entre o passado e o presente de novas modalidades de meios para o artista. É que a manipulação das formas é algo deveras importantes para TCC tal qual o tema. Para ele existe uma manipulação das formas que está implícita na obra, uma pesquisa formal que é justamente a parte que requer uma atenção alta, pois requer muita artesania. “A ironia levada a loucura da série facetada (dos macacos e máscaras) era tentar desenvolver uma linguagem formal completamente imbuída de acidez crítica, para no fundo afirmar que o cubismo realmente realista é aquele que denuncia este objecto (a escultura), que ele é um artesanato de luxo, metido a falar de grandes temas, e que vai ser vendido e especulado como qualquer outro objecto. Essa última frase também tem um elo com a questão formal pois existe uma tentativa de estabelecer uma equivalência das coisas, dos temas, seja o policial, o bandido, o mendigo, o macaco, etc…, isso porque todos entram nessa pesquisa formal meio ensandecida, que neste último ano passou gradualmente das pesquisas com facetas para explorações mais profundas com faiança, na qual agora está misturando dedadas e facetas para criar vários tipos de “ilusões”, i.e. a ilusão de lama, ou de fogo e fumaça no microondas. Porque quanto mais uma vez acredito que a mensagem maior também sendo passada através da forma, e não dos temas. Penso bastante numa frase que li na biografia do Philip Guston e que acho bastante coerente. Ele diz que o desafio pessoal dele era desenhar um sapato, pois se conseguisse fazer que algo tão chato como um sapato ficasse interessante, então teria tido real sucesso na empreitada artística” [v].
Das explorações mais profundas na faiança surgem a nova série de trabalhos, onde uma mistura de imagens que vão se formando e ganham depois cores psicadélicas. Das tais “Três novas esculturas pessimistas”, O Homem da lama revisitado (2008), o Manequinho e microondas e a Composição Luso-brasileira (2008), o humor ainda é a parte mais visível do tema onde as referências são singulares e é preciso desvenda-las, pois a violência continua lá, a espreitar-nos. A Composição Luso-brasileira é um pequeno souvenir de viagem que mergulha fundo as raízes da formação brasileira. Um soldado quinhentista esborracha a face de uma índia numa cena grotesca. O detalhe que a ferramenta da agressão é ao mesmo tempo bastão e seu falo. Chocados? Pois bem que tal uma espreitada detalhada nas gravuras de Debret e nas esculturas de Bordalo Pinheiro? No entanto a violência é amenizada pelo lado sexual explícito na acção. A ingenuidade nunca foi a arte dos inteligentes, mas sim a ironia. O Homem da lama revisitado é uma peça que lida com tempo e imprevisibilidade. Uma figura expressionista de boca aberta que emerge da lama que molda seu corpo. Ou será o contrário? Não sabemos, TCC deixa para nós essa escolha. Há ecos de biscuit rococó vienense, do expressionismo das figuras angustiadas de Emil Nolde, da crónica social de Bordalo Pinheiro, da saturação da imagem “jeffkoonsiana”, do informe de Lucio Fontana. O seu Manequinho e microondas é a sua interpretação da famosa escultura manekkenpis, símbolo de Bruxelas. Mas é também uma aproximação fisionómica com o Manequinho que enfeita a entrada do clube de futebol Botafogo, no bairro do mesmo nome na cidade do Rio de Janeiro. Ou melhor, a reinterpretação que o artista empresta a peça ao evidenciar na figura a cabeça enrolada com uma camisa, como os traficantes das favelas cariocas, quando não querem que seus rostos sejam expostos. Há uma intenção do desafio do Manequinho pois enfia a cabeça numa pilha de rodas de carro, uma alusão ao forno crematório de cadáveres (presuntos, na gíria local) utilizado pelos traficantes que recebe o nome de “microondas”.
A razão temática de TCC pode ser a violência, o sexo, a dominação, o mundo falo cêntrico, que fazem mover as acções das suas figuras habitantes do seu mundo, i.e. os macacos, as caveiras, os bandidos, as índias, os soldados, associadas aos diamantes, as máscaras, as pranchas de surf que mais parecem totens ou máscaras vudu, tornam-se um espectáculo de humor e cinismo. “O humor levado até a loucura, parece ser um dos poucos jeitos que meu lado ‘humanista’ consegue lidar com a loucura violenta da realidade. Hoje em dia eu não me preocupo tanto com o facto de a violência estar ligada a origem da cultura quanto o facto de ser parte integral dela. Afinal a violência está ai, por todo lado, sendo perpetrada constantemente, em todo lugar. Então o meu lado humanista me diz que eu devo resgatar essa função “debretiana”, “bordalliana”, da arte de explicitar a violência quotidiana com humor, pois ambos o fizeram com um humor ácido, tragicómico. Por outro lado, o meu lado místico, i.e. não antropocêntrico acha isso maravilhoso, pois de uma perspectiva mística, a violência é tão parte do mistério da criação quanto outra parte da existência. Eu queria misturar esses dois lados no trabalho. Enfim, é também pelo humor que vejo essa minha insistência em títulos redundantes. Eu queria fazer ícones iconoclastas, estatuetas que tenham um mínimo de auto-análise e saibam que fazem parte de um sistema corrupto e cínico, que vai absorve-las para transformá-las em ídolos falsos. Tem esse meu lado moralista que é um saco… mais uma vez é minha tentativa de ser realista” [vi].
Para TCC elas são essencialmente uma maneira de exorcismo de questões como especulação, capital, ambiguidade da obra de arte, falsos valores, originalidade. O seu caldeirão antropofágico cabe um pouco da cultura de rua do Rio de Janeiro, um pouco da história (nossa) luso-brasileira, a escultura (crítica) de Jeff Koons, o inacabado (puro) de Lucio Fontana, a escultura popular e os estímulos visuais oriundos do mundo em frenesi – vide as notícias de guerra que inundam as TV e jornais, as descobertas científicas e arqueológicas, o acelerador de partículas, os novos peitos da pin-ups de Hollywood, o mito do bandido herói no cinema latino-americano, as guerreiras assassinas na banda desenhada de Crumb, as louras do western pop de Tarantino ou Nancy Sintra a cantar docemente “Bang bang, my baby shoot me down…”. “Três novas esculturas pessimistas, e uma não tão nova” seria o encontro amoroso de Cioran com Nancy Sinatra, afinal baby, “só dói quando eu rio”[vii].
Paulo Reis
[i] Tradução livre de um extracto do livro Cahiers, Paris: Gallimard, 1997.
[ii] Porrete usado pelos índios brasileiros.
[iii] Depoimento do artista.
[iv] Em conversa com o artista Luiz Zerbini, publicado no catálogo Minha contribuição para a cultura e a natureza. Vol. 1- São Paulo: Galeria Fortes Vilaça, 2006-2007.
[v] Depoimento do artista.
[vi] idem.
[vii] Citação da letra Valsa do Maracanã, de Paulo Emílio e Aldir Blanc.