Doodling Infinity
Existem pessoas, no seu dia-a-dia, a manipularem pequenos objectos, subconscientemente, “doodles” no mundo inteiro. Existem mesmo “actividades” universais tal como roer uma caneta, brincar no café com o pacotinho de açúcar vazio, partir um fósforo com os dentes, etc…
Os doodles são produzidos independentemente das suas nacionalidades, fronteiras geográficas ou sociais; são uma prática universal e extremamente subconsciente.
O facto de existirem como um acto compulsivo, atribui-lhes semelhantes qualidades à prática criativa do artista. No entanto, através dessa manipulação de objectos universais, existe uma obsessão, um certo sentido de reza, de aposta, de culpa, projectado no objecto num sentido universalmente intimista de homens, mulheres e sobretudo crianças.
No doodle não há compromisso entre mim e a arte, não produzo nada; no entanto ao apontar para a existência dos doodles, estou a interagir com eles roubando-os, etiquetando-os, fotografando-os e coleccionando-os; colecção esta que consiste em milhares de doodles tendo começado a coleccioná-los em 1982 na Slade School em Londres.
Joana rosa, 2009
Esta entrevista foi realizada à artista Joana Rosa por ocasião da exposição, Doodling Infinity, 2005-09, na VPF Cream Art Gallery, em Lisboa.
João Silvério: Olá Joana Rosa!
Joana Rosa: Olá João!
JS: Joana, esta exposição que vais fazer na VPF Cream Art Gallery é uma exposição em que regressas aos doodles ou os doodles mantêm-se como prática artística específica do teu trabalho, há muitos anos? A última exposição dos doodles foi em 2000, no CCB, com a exposição Initiare.
JR: Sim, em 2000.
JS: Podes explicar-nos melhor?
JR: Comecei os doodles em 1982 na Slade School of Art, em Londres. Fui coleccionando, recolhendo doodles na rua ao longo do tempo. Tenho milhões, internacionais, até e gostava de ter de outros continentes, do mundo, porque é uma coisa que todo o mundo faz. O tempo passou e eu acumulei uma tal quantidade de doodles e da mesma maneira que amadureci como pessoa e como artista, também os doodles amadureceram.
O que me fascinou é que eles não mudaram como objectos conotados com a Pop Art, ou a Arte Povera, ou conceptual, ou pós-moderna. Os doodles são uma coisa que se mantém e isso fascinou-me tanto que são algo universal com a qual eu me identifico bastante porque confio neles, bastante, são puros enquanto objectos, eu não posso dizer que sejam esculturas porque isso seria muito pretensioso.
JS: Mas porquê? Por seres escultora?
JR: Sou formada em escultura mas sou um bocadinho de tudo.
JS: Sim, eu sei.
JR: Mas é a forma de arte na qual eu confio mais.
JS: Na nossa conversa antes de começarmos a gravar a entrevista, dizias precisamente este ser um objecto mais puro, esse objecto mais puro tem a ver com o facto de te distanciares porque não assinas os doodles.
JR: Porque não são feitos por mim, eu apenas aponto para a sua existência.
JS: Mas esse apontamento tem uma marca pessoal que é uma marca que identifica; uma forma de fazer que é a etiqueta, ou seja, como tu classificas cada um deles, muitas vezes adicionando pequenos elementos que remetem para a memória do momento, ou para a história, ou para um elemento identificativo da pessoa que os manipulou.
JR: Sim, eles têm uma história subconsciente sobre cada indivíduo, as pessoas não dão por isso quando os fazem.
JR: Sim, não tem. A escultura formal tem uma história conceptualizada pelo artista.
JS: Sim, está integrada num processo histórico.
JR: Está integrada na história de arte, etc. E os doodles não, por isso é que as pessoas recusam dizer que os fizeram e eu fotografo-os, mostro-os, digo “olha tu fizeste isto” e as pessoas respondem “não me lembro nada de ter feito isto”.
JS: Porque é um acto subconsciente e irreflectido, pois não há consciência de estar a produzir um objecto determinado.
JR: Sim, mas no entanto ele reflecte totalmente o estado de espírito de cada pessoa, reflecte em que é que a pessoa está a pensar, ou a conversar, ou se está mais nervosa, torce o elástico à volta do dedo, com muita pressão ou se está calma, brinca com o lenço de assoar ou morde um fósforo, e por aí fora.
JS: Vais apresentar nesta exposição cerca de 120 imagens que são registos documentais, e os doodles não vão lá estar, de facto.
JR : Não.
JS: O que vai ser exposto são imagens trabalhadas por um fotógrafo.
JR: São.
JS: Portanto, há aqui uma outra intervenção, que é a intervenção do fotógrafo, que vai fotografá-los sobre fundo negro como se fossem objectos muito singulares.
JR: São.
JS: A palavra singular é uma palavra meia estranha, não é?
JR: É!
JS: Porque ninguém consegue perceber muito bem porque é singular. Neste caso é singular porquê?
JR: É singular porque as pessoas são únicas, cada pessoa é única e cada objecto é singular, de facto.
JS: Então cada doodle é irrepetível?
JR: Eles não são completamente sósias uns dos outros, mas há doodles universais! Partir um fósforo entre os dentes, brincar com o pacotinho de açúcar vazio no café, chupar e trincar uma caneta, etc.
JS: Ou seja, há acções universais com diferentes tipos de objectos no acto do doodling?
JR: E o facto de eles serem fotografados?
JR: Ah! Eu fiz a selecção.
JS: São fotografados como se fossem jóias, ou seja, não são fotografados em cima de uma mesa que seja reconhecível, não são fotografados na mão de alguém que os está a fazer, são fotografados isolados.
JR: São isolados e é por isso que o cenário por detrás dos doodles é incógnito e incolor.
JS: Por exemplo, a pessoa brinca com o papel mas deita fora.
JR: Sim.
JS: E tu recolhes do chão, ou recolhes de uma mesa de café?
JR: Eu espero. Com as crianças é diferente do que com os adultos. Eu peço-lhes para mos darem, explico-lhes porquê e elas sentem-se artistas…as crianças são as pessoas que fazem mais doodles, pois têm sempre algo escondido na mão que manipulam muito. Eu sou a detective.
JS: Como?
JR: O detective fica a observar os outros em sítios públicos até as pessoas abandonarem o seu doodle.
JS: Partilhar o tempo dos outros?
JR: Partilhar o tempo dos outros, observar as pessoas que estão a fazer doodles, em jardins, em escritórios, em escolas, em cafés, nos cabeleireiros. Esperar que as pessoas acabem de fazer as manipulações com os seus objectos para eu correr e buscá-los, porque para mim são ouro.
Esta exposição é uma selecção, recolho cerca de 4 ou 5 por dia, eu estou na rua das nove da manhã às seis da tarde. E é uma selecção porque eu tenho bastantes, eu nunca mostrarei os próprios objectos porque eles têm o aspecto de lixo, asqueroso, nojento, usado, com suor.
JS: De um desperdício, de um lixo?
JR: Um desperdício suado, com micróbios e tudo, com gripe! (risos).
JS: Quando recorres à fotografia, aliás, uma prática que tu já tinhas iniciado há muitos anos e que foi também utilizada como meio na exposição do CCB, os objectos nunca aparecem?
JR: Os objectos nunca são dados a conhecer, mas o universo a que eles pertencem.
JS: Privas-nos desse universo?
JR: Privo, mas não privo da história, porque tenho a etiqueta e a fascinante história de cada doodle.
JS: A etiqueta tem sempre muito poucas indicações.
Por exemplo, há pouco, quando víamos algumas fotografias, um deles referia-se a alguém que tinha mãos gordas, mas doces. Portanto, há alguma coisa que associas à figura, mas também ao carácter daquele que observas longamente.
JR: Claro que sim, porque as pessoas têm as suas personalidades e maneiras de estar, que são idênticas ao objecto.
Há algo que eu acho muito curioso: por exemplo, o artista é sempre – e refiro-me à pessoa que faz o doodle – muito parecido fisicamente com as suas esculturas, com os seus trabalhos e os doodles, com as pinturas. Por exemplo, o Giacometti fisicamente, é igual às suas esculturas.
JS: É semelhante.
JR: O Picasso é igual aos seus desenhos, o El Greco é igual às suas pinturas. As pessoas são parecidas, as pessoas projectam-se a si próprias, fisicamente na arte e também nos doodles, têm uma linguagem que representa o seu eu, a sua dimensão, a sua escala humana, projectam-se sobre os objectos, e eu observo muito isso nos doodles, porque os doodles são iguais ao aspecto que as pessoas têm e até ao feitio, á personalidade e ao estado de espírito. Porque eu também observo a maneira de estar de cada pessoa.
JS: Se fosse possível apresentar ou fotografar todos os doodles que recolheste até hoje, estarias a traçar um itinerário do comportamento humano, irreflectido, e não consciente de uma prática que tu vais transformando em cada momento que expões os doodles. Porque há um momento em que os doodles não aparecem, ficam guardados em caixotes, acumulados.
JR: Selecciono os que vão ser fotografados, os mais complexos. Eu tenho um grande conhecimento sobre pessoas desconhecidas porque passo horas a observá-las.
JS: Uma intimidade com o anónimo.
JR: Sim, enorme, enorme, eu gosto muito de observar pessoas desconhecidas, tentar adivinhar, investigar. Nas rugas dos velhos está chapado o seu feitio.
JS: Portanto, os doodles de certa forma vão recolhendo…
JR: Os segredos.
JS: Os traços espontâneos que são não conscientes para eles próprios mas que são para ti identificativos da sua personalidade?
JR: São, porque eles revelam segredos e eu fico a conhecê-las melhor, sem elas saberem. Também gosto de ouvir as conversas que têm (risos), pois projectam os seus assuntos para a forma como manipulam o objecto subconscientemente. E são transparentes, pois nem sabem que os estão a fazer. Estão nuas: é lindo ou feio.
JS: Mas mantêm-se quase como um segredo, porque essas pessoas são anónimas, desaparecem.
JR: Sim, eu não posso pôr-me na pele delas, eu não posso ter essa pretensão, há um limite muito forte, uma barreira. Os doodles existem apenas num espaço da vida das pessoas que os manipulam. Mas tenho, por vezes, mais do que um doodle da mesma pessoa.
JS: Isto agora vem um pouco fora do âmbito da entrevista, mas quando estavas a estudar em Londres, fizeste uma série de obras semelhantes ao trabalho dos teus colegas para um open studio, creio eu.
JR: Sim.
JS: Fizeste uma obra de cada um e assinas essas obras.
JR: Com a assinatura deles.
JS: Como se fosses cada um deles e praticamente só um.
JR: Sim e depois comecei a querer distanciar-me da arte assinada por mim, foi em 1981 e fiz aquilo que seria o próximo trabalho, o último trabalho ou o trabalho mais recente de cada colega meu e todos eles na apresentação aos tutores, no dia da apresentação dos trabalhos nos seus espaços de trabalhos perante os tutores, assumiram os trabalhos que eu fiz às escondidas, que eu assinei por eles, como sendo deles. Só um é que deu por isso, um pintor, porque eu não sei pintar e ele percebeu que não era o trabalho dele, de resto todos eles assumiram. Eram doze colegas meus, foi o estúdio inteiro. Ah! E os tutores gostaram, os tutores acharam que eram bons trabalhos!
JS: Coitado do pintor… (risos)
JR: Pois, coitado do pintor.
JS: Esse episódio traz outra coisa à conversa – que embora seja uma prática diferente do longo caminho que os doodles têm no teu trabalho – que é uma certa autonomia.
O distanciamento e a relação com a assinatura não aconteceu noutros trabalhos teus que são trabalhos com uma forte marca autoral, não é? Como no caso dos desenhos que tens produzido ao longo dos anos, como na exposição no Drawing Center. Trabalhámos juntos até e mostraste esses desenhos e depois na tua carreira, nas galerias nova-iorquinas com quem trabalhaste.
JR: Há uma certa cumplicidade. Para mim assinar o trabalho é não estar aberta ao mundo, gosto de arte invisível.
JS: Arte ou artistas invisíveis?
JR: Talvez. O divertido é que há pessoas que dizem não ter jeito para a arte, para desenhar, etc., e, no entanto, os doodles são esculturas com um “design” muito conceptual.
JS: Os doodles, para ti, são tão importantes que seria interessante, por exemplo, teres um confronto com alguém que também tivesse um tipo de recolha semelhante e que tivesse esse tipo de interesses ou não?
JR: Claro que sim. Trocar, enriquecer este campo, isso seria extraordinário!
Eu espero trabalhar com um antropólogo, no futuro, porque os doodles são pré-históricos, existem desde que o Homem existe: todos brincamos com objectos ou com o próprio corpo, com uma madeixa do cabelo, com as pestanas, com as mãos.
Mas há uma coisa que me interessa imenso, tanto nos desenhos que eu faço agora, como nos que deixei de fazer: é que estou sempre à procura da escala humana, como tive formação em Ballet, em body art, a escala humana é a coisa que mais me interessa. Nós projectamo-nos para o universo por uma questão de sobrevivência.
JS: Mas também há a performatividade do corpo.
JR: Exactamente.
JS: E a performatividade do corpo como objecto, quando esse objecto pode ser uma madeixa de cabelo como dizes.
JR: Pode.
JS: Como referiste uma vez que alguém, que agora não interessa quem, tinha o que nós aparentemente chamamos um tique.
JR: São performances subconscientes. E que são conceptuais em termos de arte.
JS: … que brincava com uma prega de roupa.
JS: Sim, da camisa, do casaco. Os tiques são mais conscientes, e no outro extremo encontram-se os bibelots, há pessoas que fazem doodles e levam para casa e tornam-se bibelots como o origami, mas os doodles são performances subconscientes, isso são.
JS: Quase inconscientes?
JR: Quase inconscientes. Há pessoas que me dizem que “eu não fiz isto”, há outras que mandam pelo correio os doodles que fizeram.
JS: Isso já é quase um acordo entre ti e a pessoa, e essa pessoa sabe que tu estás a reconhecer isso como um objecto do teu trabalho artístico, mas a posteriori.
JR: Claro. Eu própria faço os meus doodles sem dar por isso, eu tenho bastantes doodles. Faço com t-shirts Lacoste, com maços de cigarros SG Ultra Light (risos); tenho os meus próprios doodles, os meus scribblings, há pessoas que só fazem scribblings e não fazem doodles; depois há doodles que não se mexem, que não são manipuláveis, são como pedras, não se alteram como objectos. São acariciados, são bons para o stress.
JS: Sim, são manipuláveis mas não se alteram na sua forma, como a pedra.
JR: Como uma pedra ou um bocado de madeira, algo duro, muita gente tem doodles dentro dos bolsos, porque eu vejo os bolsos a mexerem.
JS: O que é muito interessante porque isso transforma o objecto numa espécie de fetiche?
JR: É um fetiche. Como as chaves do carro, brincar com os anéis preciosos.
JS: Um fetiche ou um hábito compulsivo?
JR: É uma reza. Associo mais isso a um terço, que é algo que não se altera, a pessoa está ali a agarrar, como a pedir qualquer coisa; ou as moedas nos bolsos dos casacos dos homens.
JS: Portanto, quando tu falas no terço, o doodle aparece como um objecto mágico.
JR: Mágico! E a pessoa faz desejos, a pessoa tem desejos, projecta os seus desejos. Também há aqueles objectos de plástico com gel lá dentro que se compram para aliviar o stress. Mas isso já é muito consciente.
JS: Quando dizes mágico queres dizer omo um objecto de fé?
JR: Sim, de fé. De querer, de desejar, de redenção, de uma cristandade ou de uma religião. Bom, há tantas religiões no mundo, não é? E ainda bem. São milhões de religiões e há tantos deuses. O dinheiro, as pessoas muitas vezes brincam com as moedas, fazem girar as moedas como se fossem piões. As pessoas têm moedas no bolso, sobretudo os homens, nos bolsos dos casacos, eu ouço as moedas, eu não as vejo, há doodles que eu só oiço, não vejo.
JS: Portanto, o que disseste transporta-nos agora para um campo um pouco mais obscuro?
JB: Bastante.
JS: Precisamente porque tu não os vês?
JR: É assustador.
JS: Assustador porquê?
JR: Parece um filme de terror, não percebo bem o que é que está lá, o que é que existe, que formas é que têm essas coisas. Eu oiço tilintar coisas, muito. Quando vou na rua com a minha caixinha para recolher os doodles, eu gostava de roubar essas coisas às pessoas mas não posso.
JS: Esses doodles são impossíveis de recolher.
JR: Impossíveis! Não posso andar a roubar as chaves das casas, dos carros (risos) era chato.
E quanto às crianças é que é um bocado chato porque aí eu tenho a sensação mesmo de as roubar porque são os melhores fazedores de doodles, têm sempre qualquer coisa na mão, uma bolinha, um lápis. Tenho muitos lápis roídos por crianças e por adolescentes na escola. Quando vou às escolas aparecem muitas canetas roídas, tenho grandes colecções de canetas, de bicos de canetas. Estas vão-se modernizando com os tempos, antigamente era tudo bics, bics, bics e agora as canetas têm a capacidade de ser dos objectos que têm mais conotação estética, porque evoluíram. Todos os objectos evoluíram, mas a moda das canetas, vai sendo cada vez mais moderna e são mais enfeitadas e mais cor-de-rosa fosforescente ou há mais diversidade. É como os anéis e os porta-chaves, o design vai evoluindo.
JS: Joana, diz-me uma coisa, tu assistes às sessões fotográficas onde os doodles são fotografados?
JR: Claro.
JS: Controlas?
JR: Tudo. Estou sempre em todo o lado.
JS: E a classificação, a longa classificação que tens feito ao longo de quase trinta anos?
JR: Sim, trinta anos.
JS: Essa classificação é feita sistematicamente ou de tempos a tempos?
JS: Todos os dias assim que eu chego a casa etiqueto e escrevo a história dos objectos às etiquetas, e ato-as aos objectos-doodles.
JS: Os doodles, de facto, trazem uma memória de todas essas pequenas anotações. As etiquetas têm uma área para escrever muito reduzida, portanto, sintetizas ao máximo um ou dois elementos característicos daquela pessoa, algumas conheces, outras não.
JR: Sim, porque eu quero dar margem para o público imaginar, acho que um artista não deve contar tudo. O artista tem o seu mundo interior e as pessoas também têm o seu mundo interior e eu não devo impor ou mostrar tudo. Mostro só o quanto basta e a pessoa imagina o resto, senão eu escrevia um texto, explicava tudo e nem mostrava o objecto.
JR: Sabes, eu escrevo imenso sobre os doodles, gosto imenso, é um mundo infinito, mantenho um diário que espero publicar no fim da minha vida.
JS: Eu tenho alguns desses textos. As exposições dos doodles são organizadas durante anos, meses.
JR: Eu vou escrevendo.
JS: Mas quando mostras os painéis compostos pelas séries de fotografias, elas são organizadas com alguma ordem? Ou a organização da montagem da exposição é aleatória?
JR: Por exemplo, nesta exposição, são doodles entre 2005 e 2009.
JS: É importante tornar isso claro para se compreender.
JR: Não são aleatórios, por exemplo, no CCB, eu mostrei doodles entre 1995 e 2000.
JS: Depois houve um intervalo grande.
JR: Sim, estive a recolher. Depois tenho datados desde 2000 até 2005, ainda não mostrados, e agora vou mostrar de 2005 a 2009.
JS: Como disseste antes, é uma selecção?
JR: São sempre selecções.
JS: Porque fazes uma recolha de quatro, cinco por dia.
JR: Sim, mas muitas vezes não recolho nenhum. Podem ser quatro ou cinco num dia e é com muita sorte, muitas vezes não recolho nem um mas observei-os e eles existiram mas as pessoas levam-nos para casa. Já me aconteceu ficar horas à espera que as pessoas os abandonassem, ao frio, à chuva e nada. Eu tenho de ficar à espera durante horas, dependendo da profissão de cada doodler. Acontece muito, fico a conhecer a pessoa através do tipo de manipulação, mais calma, mais stressada, mais intensa.
JS: E o doodler não sabe que é um doodler.
JR: Pois não. Mas eu sei.
JS: Alguém faz doodles com objectos grandes, com objectos a uma escala maior do que a da manipulação da mão?
JS: Se for na praia, por exemplo, podes brincar, isso é mais no scribbling, por exemplo, o scribbling é maior que o duddling. Podes brincar na areia, fazer desenhos grandes que não ultrapassam a tua escala normalmente, ou seja, não vais mais longe do que aquilo que a tua mão ou o teu braço alcança.
JS: Ou que o pé, ao desenhar um círculo na areia?
JR: Sim, exactamente, desenhar um semi-círculo com a ponta do dedo e o braço, tu não te levantas para ir acabar o scribbling, as pessoas não se mexem mais do que aquilo que é preciso para fazer os seus doodles ou os seus scribblings, não se levantam, não se sentam no chão para isso, quer dizer, não movem o corpo de propósito para fazer a manipulação de um scribble. As pessoas ficam quietas e fazem o que lhes dá jeito porque é uma coisa secreta, e é imediata e sobretudo confortável, os doodles são muito confortáveis de fazer. Bom, uma amiga minha estava com um desgosto de amor e ao desabafar comigo, estava completamente nervosa e esteve o tempo todo a enrolar um elástico à volta do dedo, de tal maneira que o dedo começou a ficar branco e roxo e doía-lhe, mas ela nem devia sentir a dor, porque estava a chorar e foi muito triste. Fiquei com o elástico. Tentei ajudá-la, mas há doodles que doem. Mas em geral são muito confortáveis de fazer. A pessoa que está a fazer o dooddle ou o scribble, não quer nada, quer simplesmente estar, quer existir, quer estar como lhe apetecer, à vontade, mas em geral são pessoas tímidas que fazem os doodles.
JS: Portanto, os doodles serão um longo mapeamento do ser humano.
JR: Sim longo, enorme, desde que o ser humano começou a existir, há mais de 50 mil anos em África. Desde os Khoisan, ou Bosquínamos, da tribo San que estão na origem do Homem. Sim, é um longo mapa.
JS: Joana, obrigado pela tua colaboração e pela tua disponibilidade.
JR: Obrigada, João Silvério.