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First-Walk, Scannogram, Lambda-Print, 55x40 cm

First-Walk, Scannogram, Lambda-Print, 55x40 cm

Nem Tanto ao Mar Nem Tanto a Terra é a primeira exposição individual de Rita Soromenho em Portugal. A artista Portuguesa vive e trabalha em Londres e apresentará na VPF Cream Art duas séries fotográficas, Peripatetic (2007) e Nem Tanto ao Mar Nem Tanto a Terra (2009). Criadas a partir das suas deambulações urbanas ou dos conteúdos esquecidos das gavetas de família, os seus scanogramas situam-nos entre real e imaginário e reflectem sobre perda pessoal, colectiva e um tempo votado ao desaparecimento.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra – do ditado popular nasce uma ironia que domestica o fulgor masculino de um povo de marinheiros.
Naturezas-mortas, fruto de caminhadas, e rendas fantasmagóricas, que volteiam como polvos num profundo mar de trevas, são o objecto das duas séries apresentadas nesta exposição por Rita Soromenho (Lisboa, 1977).
Porque seria sintomática esta meditação: enquanto a mão tecia, o pensamento floria no círculo de mulheres que conviviam entre herbários e macramés – um refúgio meditativo contra um obscurantismo intelectual imposto durante séculos. Hoje podemos percorrer o mundo com os mesmos ténis, mas nem tanto ao mar nem tanto à terra.
 
Passeios peripatéticos, caminhadas sem destino que se fazem dentro de uma geografia reconhecível, de uma circunferência desejada – quase familiar –, que permitem ao pensamento vaguear enquanto caminhamos em torno.
A série Peripatetics (2007), de Rita Soromenho, nasce deste vaguear contemporâneo por paisagens naturais numa cidade, neste caso Londres. Nos 8 scanogramas aqui apresentados surge uma nova interpretação da natureza “ainda viva”, segundo a designação anglófona de still life.
Em imagens como Leabank walk os estames dos dentes –de -leão ainda parecem desprender-se das suas flores, e estes bouquets de grande simplicidade na sua suspensão espacial adquirem uma presença cheia de densidade e de memória.
Como a borboleta que se aproxima das três nêsperas na homónima pintura de Adriaen Coorte 1 (1883 – 1707, Middelburg), existe, na natureza morta, uma procura de essencialidade, tanto no objecto como na sua representação – um equilíbrio zen.

Porém, ao olhar atentamente para estes bouquets, há algo que perturba a ordem das naturezas-mortas: estão imóveis sem suporte físico, são flores suspensas num espaço sem força de gravidade – evocando-me um pequeno conto de Clarice Lispector  que começa assim: « Juro, acredite em mim – a sala de visitas estava escura – mas a musica chamou para o centro da sala uma coisa que acordada estava ali – a sala se escurecera toda dentro da escuridão – eu estava nas trevas – senti porém que por mais escura a sala era clara – agasalhei-me do medo no próprio medo – como já me agasalhei de ti em ti mesmo – o que foi que encontrei? – nada senão que a sala escura enchia-se de uma claridade que parecia a claridade de um sorriso – e que era imanente na flor – e que estremecia no centro dessa difícil luz…».2

Nos 7 scanogramas de Nem tanto ao Mar Nem Tanto à Terra (2009), as formas das rendas, destes crochets que vagueiam num infinito primordial, são trazidas para primeiro plano pela artista.
Observamos o mesmo tratamento de fundo negro aplicado a um objecto do dia-a-dia: as rendas da família. Mas, nestas imagens, opera-se uma transformação do objecto num ser quase animado, surge um bailado silencioso de formas, uma vida para além das memórias.
Fotografia digital sem câmara, na qual a mão compõe o objecto, que recolhe e dispõe na composição; a seguir, é scannarizado, radiografado sem que os seus ossos apareçam, e a sua superfície imprime um rastro na imagem, como se o código genético pudesse ser visível na pele.
Etimologicamente, scan viria da raiz latina scandere ou subir passo a passo, ou seja, outra itinerância que permite observar lentamente o movimento.
Talvez esta redescoberta da natureza-morta, renovada pela técnica digital da fotografia que serve de memória à humanidade nos seus registos e arquivos recentes, seja um sinal de um retorno à civilização.

Sílvia Guerra
Setembro 2009

 

www.ritasoromenho.co.uk

Publicado a 16 de Setembro de 2009