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“…I have reached these lands but newly
From an ultimate dim Thule
From a wild weird clime that lieth, sublime,
Out of SPACE – out of TIME.”
Edgar Allan Poe, “Dreamland”

“…From matter and light, evidenced in solid and shade.
There is a twofold Silence – sea and shore –
Body and soul. One dwells in lonely places…”
Edgar Allan Poe, “Silence”

Algumas reflexões, desenvolvidas por Edgar Allan Poe em Marginalia (1849), foram premonitórias, antecipatórias quanto aos caminhos cumpridos pelo pensamento filosófico no séc. XX. A sua abordagem prenunciadora incidiu, destacando-se neste contexto, o relativo aos conceitos de espaço e tempo, antes do aprofundamento elaborado pela Fenomenologia da percepção – em particular nos escritos de Gaston Bachelard e Merleau-Ponty. Também na argumentação, relativa à definição de “imagens psíquicas”, o autor americano foi (em certa perspectiva) um precursor de Freud, explanando as acepções da “memória” e das imagens mentais”, mencionando-se as mais relevantes.

Avançando, numa leitura focalizada, quer da obra poética, quer dos textos de ensaio crítico e filosófico, designadamente no citado Marginalia, os pressupostos organizam-se, denotando coerência e lucidez. Marginalia são aquelas notas escritas nas margens dos livros, pequenos textos publicados, em diferentes revistas americanas entre 1844 e 1849, pelo próprio escritor nesses derradeiros anos da sua vida. Incidem sobre tópicos diversificados – notas de leituras, análises incidindo sobre a filosofia, a moral, as ciências, a linguagem, a arte da ficção e mesmo, reflectindo ainda sobre as dificuldades (incompreensão, inadaptabilidade) com que então os artistas se deparavam na sociedade. São textos de escrita fluida (denotando erudição significativa), organizados numa explanação de tópicos singulares; devidamente concatenados e concentrando numa extensão concisa raciocínios e juízos perspicazes e consequentes. Acreditava que uma escrita de qualidade deveria ser breve, concentrando-se num resultado específico e ímpar. Frequente a sua fundamentação na filosofia grega, recorrendo ao simulacro dos diálogos platónicos (caso de “Colóquio de Monos e Una” e “Conversa entre Eirós e Charmion”), remetendo para uma assunção metafísica que não é, de todo, inconciliável ao visionarismo fenomenológico ou psicanalítico, antes lhes confere ancestralidade e “espessura”.

 No referente ao conceito de tempo afirma que dele temos consciência a partir do acumulo de acontecimentos. O que, todavia, não corresponderá à mais genuína assunção da experienciação/percepção, pois o tempo não é apenas uma “sucessão de acontecimentos”. Entende que os acontecimentos sejam o que nos permite a (consciência da) percepção do tempo, daí inferindo-se, por vezes, erradamente, que o “tempo seja/é a sucessão dos acontecimentos.

                                   “Nous n’avons pas conscience du temps que par les seuls événements. C’est la raison pour laquelle nous définis sons   le temps (de façon quelque impropre) comme une sucession d’événements; mais le fait luimême que les événements soient le seul moyen que nous ayons d’appréhendre le temps a tendance à en gendrer l’idée erronée selon laquelle les événements sont le temps.”1

 Os pressupostos epistemológicos para a definição de espaço são análogos. Ou seja, será através da presença dos objectos que temos consciência do espaço, definindo, consequentemente como “sucessão de objectos”.

                                   L’espace est rigoureusement analogue au temps. C’est seulement par les objets que nous avons conscience de l’espace, et nous pourrions avec autant de raison le definir comme une sucession d’objets.”2

A colocação dos objectos, em áreas expandidas e não circunscritas, adquire a sua delimitação pelo conceito de restrição – entenda-se pela demarcação de contornos, dentro de uma área anteriormente não confinada, que passa a sê-lo pela fisicalidade dos objectos em si, porque existe um sujeito que sabe/pode percepcioná-lo.

A noção de espaço é adquirida pela exploração que o sujeito realiza através do seu corpo próprio, encontrando os seus limites, a sua conformação em diálogo consigo mesmo e com os outros – incluam-se os objectos no espaço. O mesmo se aplique à acepção fenomenológica de tempo: os acontecimentos não se reduzem ao vivido (percepcionado) a partir de outrem, mas através do sujeito em si, no confronto com a sua vivência, coordenando distintas acepções, onde passado, presente e futuro são cúmplices.

“Por outro lado, quando o acordar é acompanhado da lembrança de visões – como por vezes acontece – é preciso considerar que a alma está num estado que lhe asseguraria a sobrevivência após a morte corporal, a felicidade ou a miséria da existência futura, sendo indicada pela natureza das visões.”3

Em complementaridade, E. A. Poe realça a dimensão não materializante do sujeito pessoal, esse período onde o espírito parece, por instantes, destacar-se do corpo, transcendendo-se. Pode relacionar-se esta perspectiva com os fundamentos da triunica choreia, advinda da tradição dos cultos órficos e dionisíacos onde se pretendia atingir um estado de transe, de suspensão da fisicalidade do corpo em prol de uma vivência espiritual, desagrilhoada de constrições e opressões (de natureza física repercutindo no espiritual).

                                                          “Dans la vie de chaque homme, il survient au moins une époque où l’esprit semble un court moment se de tacher du corps, et, s’élevant audessus des preoccupations mortelles, au point d’en avoir une vue compre hensive          et générale, apporte en toutes circonstances une appreciation de son humanité, aussi exacte que possible, à cet esprit particulier.”4

 

Os 5 ARTISTAS em MARGINALIA – d’aprés Edgar Allan Poe

                                               “Finalmente, a escada do sótão, mais abrupta, mais gasta, nós a subimos sempre. Ela traz o signo da ascensão para a mais tranquila solidão.” 5

 As obras dos 5 artistas presentes em Marginalia – d’aprés Edgar Allan Poe espelham, tornam visíveis, audíveis…quer as efabulações que anunciam o mundo das “imagens psíquicas” e/ou das imagens-memória…memória/mentais”: Brígida Baltar, Susanne Themlitz e Jorge Abade, quanto a acuidade depurativa adstrita à reavaliação, reconstrução conceptual e estética dos conceitos de tempo e espaço: Pedro Tudela e Mauro Restiffe. Todavia, e considerando a especificidade arquitectónica da Plataforma Revólver, os 5 artistas reafirmam a plasticidade e flexibilidade do mesmo, preservando – em acção mútua – todas as acepções identitárias envolvidas, ou seja: a identidade de si mesmo como autores/artistas; a identidade das obras presentes e a identidade do referido espaço expositivo.

Saliente-se que, o facto de a curadoria ser pensada ab initio para um local, originariamente com funcionalidades adstritas a “sótão” (na nomenclatura fenomenológica mas também decorrente da funcionalidade quotidiana societária) propicia as diferencialidades anteriormente mencionadas e que se entrecruzam, pois as “revêries”, os deavaneios, as fantasias (…) de Brígida Baltar, Susanne Themlitz e Jorge Abade exploram igualmente o espaço físico (e arquitectural) através da assunção dos seus objectos míticos, simbólicos ou arquetípicos, tanto quanto propagam as noções de percepção de tempo linear, mítico e/ou onírico – legitimando, portanto, as ambiguidades subjacentes à confluência entre imaginário, objectualização, matericidade…assim como todas as plausíveis derivações e interpretações que o público queira…

A apropriação (leia-se cativação) do espaço – e intrinsecamente a cativação/percepção do tempo – nas fotografias de Mauro Restiffe iludem o reconhecimento arquitectural, destemporalizando-o. Assim, ficará visibilizada a acepção questionada por Edgar Allan Poe, antes explanada. Finalmente, a instalação de Pedro Tudela – concebida propositadamente para o “sótão” da Plataforma Revólver, exprime singularmente essa acepção de Bachelard quanto nos seus “ninhos” se concentra o mundo todo. O concerto/performance que Pedro Tudela irá realizar, evento efémero quando da “finissage” da mostra, associado aos conteúdos presenciais durante o período em que Marginalia estará patente, conduzem-nos, impulsionam-nos, na transferência de conceptualidades espacio-temporais, promovendo sinergias psico-afectivas e ideológicas.

                                   “…”Art”, je l’appellerais la “reproduction de ce que les sens perçoivent dans la nature à travers le voile de l’âme”. 6

A diversidade de géneros literários, bem como o âmbito e afectação a áreas de conhecimento múltiplos, caracterizam a produção de Edgar Allan Poe: poesia, contos/ficção, ensaios, textos filosóficos (aforismos) e de crítica literária. Procurando-lhe um denominador comum, atenda-se a que o texto literário se define pela força psíquica exercida sobre o leitor – o que lhe confere autonomia no campo da escrita e lhe outorga consistência. Em E. A. Poe, mais do que um posicionamento esteticista consignado ao lema “l’ art pour l’art”, em que o poema fosse considerado per se, enquanto forma (e quase nada mais), considere-se que é na alma (campo psíquico total) que se desencadeia a evidência do valor intrínseco poético. A alma aspira a ser invadida totalmente pela linguagem e o poema é apenas esse local/lugar psíquico, onde se respira – em dissonância – consciente e inconsciente, onde se conclui a junção entre o mental, o psíquico e o físico. Sublinhe-se que em Marginalia (1849), E. A. Poe afirma a oposicionalidade entre o “psíquico” e o “mental” e, em Princípio Poético, constata-se menção do psíquico como associado à alma.

A ambiguidade semântica, epistemológica potencializa a criação, tanto como estimula a recepção, por parte do leitor/espectador. O prazer poético é um prazer misturado de tristeza, pois é constituído por alegrias estéticas apenas “entrevistas”, precisamente, através do poema.
E. A. Poe celebrava, genuinamente e sem exclusão, no poder das palavras em que cabia acreditar e na realidade evanescente de suas efabulações/fantasias e ficções.

                                    “Um pouco menos de exactidão deixar-nos-ia ficar com um pouco mais de cérebro.”16

 Poder-se-ia transladar para as obras visuais este dimensionamento poético: a fotografia, o vídeo, a escultura, o desenho, a instalação possuem uma estrutura (à semelhança da estrutura linguística) onde a alma irradia entre volumes, cores, formas devidamente fundados em conceitos como: efabulação, quimera, fantasia… Todos esses devaneios oníricos e divagações exigem – por coesão e lucidez – serem resultantes de ideias e princípios estabelecidos e consequentes.
A austeridade pode fundamentar, quer a mais justa racionalidade, quer a imaginação mais divergente. Edgar Allan Poe não pretendeu enunciar, nem construir um conhecimento definitivo ou estanque; a sua intencionalidade cognitiva fundava-se na potencialidade intuitiva acumulando uma capacidade retórica transversal: “Saber não é possível. Todavia, existe uma similitude de conhecimento – um conhecimento fictício; é esse conhecimento de que a vida foi, que impede a pessoa de julgar a coisa em função dos seus méritos.” 17

 Maria de Fátima Lambert

 

 1. Edgar Allan Poe, Marginalia, Paris, Ed. Allia, 2007, p.22 (o sublinhado é nosso)
2. Idem, ibidem, p.23 (o sublinhado é nosso)
3. Edgar Allan Poe, Poética (Textos Teóricos), Lisboa, FCG, 2005, p.43
4. Edgar Allan Poe, Marginalia, p.124
5. Gaston Bachelard, A Poética do Espaço, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p.43
6. Edgar Allan Poe, Marginalia, p.103

Publicado a 17 de Abril de 2010