Artistas convidados: José Maças de Carvalho e António Olaio
Não constitui uma grande novidade que nos últimos anos tem havido uma proliferação de filmes que utilizam o computador como tecnologia de animação para a criação de efeitos que pretendem ser extremamente realistas. Esses efeitos têm, entre outras particularidades e virtualidades, a capacidade de diluírem a linha entre a live-action e a animação, entre a realidade e a fantasia. Os mundos imaginados em filmes como o Matrix, Tomb Raider, Final Fantasy ou Avatar embora envoltos em discussão, tiveram e têm a capacidade de alterarem, de forma mais ou menos profunda, a nossa experiência e a compreensão que fazemos das histórias, mas também dos nossos corpos, dos objectos e, porque não, da nossa realidade.
Este projecto que agora propomos pretende explorar, entre outras coisas, a relação entre o “animado” e o “real”, entre os desenhos e a live-action e, em particular, mas talvez de forma menos evidente, a relação entre os organismos de animação e de outros organismos que possuem mais carne e substância.
Embora o discurso académico e popular tenda a colocar a animação directamente no reino do imaginário, o que pretendemos é especular acerca de uma propriedade atribuível à animação, em maior ou menor grau, a de que ela desempenha sempre um papel de negociação entre o real e a realidade construída, representada ou inventada.
Na verdade as alterações, muitas vezes ambivalentes, impostas ao estatuto do “real”, em animação tendem a ter um impacto significativo sobre a forma como experienciamos a própria animação e o corpo animado.
Talvez seja inegável que à imagem animada lhe falta uma relação privilegiada com o “real”, atribuída normalmente a processos mais automáticos, como a fotografia.
A grande maioria da teoria da fotografia demonstra que são estas propriedades da imagem fotográfica que lhe dão esse privilégio. A ideia que fica é a de que o processo fotográfico envolve uma transferência da realidade do objecto original para a sua cópia. A fotografia enquanto emanação do referente, de um corpo real que estava lá e que através deste processo se liga por uma linha invisível (luz) ao corpo da coisa fotografada e simultaneamente ao nosso olhar.
O interessante desta ideia reside no facto de a fotografia constituir um dispositivo, que embora resulte numa cópia, está mais próximo do original, e, dessa forma, do “real”, que é descrito através dos sentidos em termos materiais, mais do que em termos visuais ou estéticos.
Será, então, o contacto físico da fotografia com o original que lhe atribui todo o poder e não a sua mera verosimilhança.
Embora a ligação privilegiada ao “real” também possa ser atingida por live-action, esta é, através da animação, aparentemente negada mas não completamente banida. Talvez, pelo menos até certo ponto, a ligação do material e do sensorial entre imagem e original seja mantida na animação, pese embora o emaranhado de metamorfoses e conexões. Em vez de confiar no corpo material, único, do original, como a fotografia, a ideia é que a animação é capaz de desenhar múltiplos originais, mesmo que para isso se veja obrigada a recorrer, por exemplo, a modelos/actores previamente filmados.
Contudo, um corpo animado constitui um objecto híbrido, não só porque é realizado através do olhar de quem anima, da suas memórias, das suas referências e da sua forma de desenhar, mas também da sua experiência pessoal enquanto espectador, factos que acabam por lhe conferir múltiplas perspectivas e complexidades.
Pensemos a esse propósito na forma como consumimos o corpo animado – não só através do cinema ou da televisão, mas também através das histórias em BD, videogames… e como todos esses media evocam uma materialidade hibridizada que funde corpos, meios de comunicação, tecnologias, num jogo que mistura diferentes registos do “real” e do “fantástico”
Nesse sentido PLAY THEM reúne, numa instalação, um conjunto de trabalhos de desenho (criados digitalmente e reproduzidos pelo processo de serigrafia) e de desenho animado (materializados em suporte vídeo).
Trata-se de uma análise exploratória do desenho enquanto tecnologia de representação, seja ela a memória, o corpo, o movimento ou qualquer outra…
Em alguns dos trabalhos apresentados essas representações concretizam-se em sequências curtas de desenho animado, em loop. A matéria de base foi na sua grande maioria retirada do universo do cinema e do vídeo vernacular. Usando uma tecnologia chamada rotoscopia redefiniram-se as imagens e as formas, anteriormente de representação fotográfica.
O que se pretende especular neste projecto, entre outros assuntos, é o facto de a animação e o desenho estarem constantemente a negociar o seu lugar entre o real e o fantástico, entre o animado e o real, e que essa relação é fundamental para a nossa experiência e sobretudo a nossa experiência do corpo animado.
É por estas razões e também (não menos importante) pela admiração e amizade pessoal que nutro pelos artistas plásticos José Maçãs de Carvalho e António Olaio, e pelo designer gráfico Rui Garrido, e obviamente pelo trabalho que têm desenvolvido, que os convidei a participar neste projecto. A complementaridade das suas obras no que diz respeito aos temas principais deste projecto — as questões da imagem, da fotografia, do vídeo, a sua relação com o “real”, o seu valor de cópia e/ou o seu eventual apagamento referencial, a apropriação e as referências ao universo do cinema, a repetição e o uso da linguagem, etc. – assuntos que me parece ver tão bem explorados pelos projectos do José Maçãs de Carvalho, mas também as questões do corpo e do seu movimento/animação, do som/música e da representação/actuação; isto é: o sentido performativo que vejo tão clara e eficazmente explorados na obra do António Olaio. Mas também a insistente valorização, pelo Rui Garrido, da manualidade (na era digital), nos valores e importância do desenho e da caligrafia e, claro, a sua inigualável perspicácia gráfica.
Mas este projecto, não se cinge apenas às obras instaladas na galeria. O catálogo constitui mais uma extensão deste projecto e um documento que pretende ser o embrião de um livro mais extenso (a editar em parceira com a Universidade Lusófona) onde se reunirá informação útil e pedagógica, contribuindo de forma teórico-prática para a reflexão intelectual e artística acerca do (re) conhecimento das questões inerentes à “animação”.
É nesse sentido que temos em mãos a elaboração de um livro que compilará ensaios de autores portugueses (alguns já presentes nesta edição: Fernando Poeiras, Lígia Afonso, Nuno Aníbal Figueiredo, Patrícia Gouveia, Paulo Viveiros), que com amizade aceitaram escrever textos originais, especialmente para este projecto; e um conjunto de ensaios de autores estrangeiros que pela sua pertinência nos parecem essenciais constarem dessa futura obra.
Luís Alegre