“É preferível escolher o impossível verosímil do que o possível incrível.”
in Arte Poética, Aristóteles
A pretensão de conversão credível do real à bidimensionalidade serve um longo processo histórico – especulativo – que marca, de forma mais ou menos declarada, a Arte Ocidental, em prática e conceito, desde a germinação dos dourados pressupostos Clássicos. Pelo conjunto de procedimentos engendrados e sucessivamente apurados evidencia-se um sistema de representação efectivamente extraordinário, admirável e engenhoso.
A capacidade de síntese da aparência do real torna entendível e explicável uma relação eminentemente empírica. Trata-se de procurar pela representação a dedução afirmativa do real, consubstanciando o processo privilegiado para a sua indução – a observação. A apresentação de uma imagem verosímil a observador e fruidor credibiliza a auscultação, eminentemente perceptiva, de ambos.
Depreendemos tratar-se de uma proposta que prevê o entendimento analítico do real, mas que assumidamente aceita subvertê-lo, porque reconhece uma intermediação particular e experimental dos sujeitos.
E todo o processo está invariavelmente subordinado a esta condição. O real não comporta Linha de Terra, Pontos de Fuga, ou Linha de Horizonte. Estes são elementos objectuais, não reais, de um sistema planeado para responder à aspiração de entender o real.
Assim, representar a Linha do Horizonte, parábola deste ávido projecto pela sua especificidade, não é mais do que manifestar-se declaradamente parte de um processo obsessivo que, por via ilusória, aspira a tentativa de representação de uma ilusão. Não é mais do que procurar figurar de forma simbólica e convencionada o que parece real. Projectar uma fronteira imaterial e intangível num plano ficcional que medeia a relação do observador com o real, é puro acto especulativo – representar ideias, corporizar o virtual, substanciar um entendimento abstracto.
Nunca foi objectivo re-localizar o real, porque não se aborda o real, antes o real intermediado. Procura-se a síntese de como ele se apresenta, de como o entende o observador.
E é esta mediação, experimental e subjectivada, que circunscreve este projecto ao campo da arte. Que o esclarece como projecto atemporal e intemporal.
LH não é real, e não se reporta ao real. LH é símbolo paradigmático da abstracção – remete-se à aparência do real. Australia não é Austrália nem se reporta a ela, reporta-se a uma ideia de Austrália incógnita, simultaneamente distante e ausente.
É isto que isenta de literalidade o trabalho artístico de Joana da Conceição. LH como Australia são deduções do real, formas particulares, subjectivadas, de relação com o mundo. Uma relação que é inatamente imune à objectivação, ao unanimismo, e que se revela como substância estética inesgotavelmente fértil.
“Uma carta individual de um objecto não tem fronteiras porque ela resulta da integração do objecto no plano subjectivo do sujeito, ela é inconstante e precisa de ser constantemente cartografada.”
in Australia, um lugar de coincidência, Joana da Conceição.
Frente a uma linha de horizonte intangível, Joana, afirma-se como um observador particular. Localiza-se no ponto definido pelas coordenadas, específicas e mutáveis, de quem testemunha e cria, que persistem até à fermentação e estabelecimento de novas ideias. E este pressuposto de honestidade, que tão bem traduz a prática criativa, repudia a sujeição à inércia, porque entende e prevê o erro, a ratificação, mas acima de tudo porque aceita o despoletar contínuo e permanente do tempo, que fomenta a mudança deliberada ou acidental. Um pressuposto expresso pela ininterrupção do projecto Australia iniciado em 2007, cujo término não foi anunciado, nem mesmo projectado.
A contemplação de LH e Australia servem a efervescência e a persistência de um percurso (a ampliação dos conceitos, a procura incessante de outras hipóstases, a elaboração de novos objectos). Um percurso comprometido com a Arte, implicado nas suas premissas e que proclama convictamente a obra – no que esta comporta e no que revela.
“As obras são os pontos da minha carta individual, e correspondem, por isso, a materializações do espaço abstracto que se desenha entre mim e a Austrália. No seu conjunto definem o que é a Australia.”
in Australia, um lugar de coincidência, Joana da Conceição.
O trabalho de Joana é manifestamente objectual, é matéria palpável, tangível – construção real. Como se procurasse recolocar a inquietação inerente à ideia que lhe deu forma; como tatuagem (visível e permanente) da complexidade de todo o processo.
Por isto, nunca o conceito aliena a forma. Pelo contrário, o seu trabalho assume um carácter eminentemente pró-aurático, apela à vantagem inigualável da relação directa e presencial – entre fruidor e obra – na experiência estética. O seu trabalho comporta o deleite estético, o embevecimento, o êxtase, a paixão pelo objecto. E reconforta o fruidor, porque faz uso deliberado de um trunfo maior – inestimável – e exclusivo do processo artístico: o prazer da fruição. É esta afirmação que contida na obra de arte permite ao fruidor entendê-la (individual e particularmente) como tal. Apesar das intenções do autor.
Face a esta declaração profundamente engajada com a arte e seus pressupostos, poder-se-á depreender sobre as obras de Joana um nascimento difícil, atribulado, produto da incessante e ansiosa prática de trabalho em atelier. Poder-se-ão percebe-las como fruto do fluxo e refluxo de um trabalho compenetrado, perseverante. Como resultado de um longo e labiríntico período de maturação que procura, através do uso descomplexado dos médios, dar corpo credível, e não gratuitamente incrível, à sua forma de entendimento do mundo.
Tânia Cortez