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Publicado a 27 de Novembro de 2010

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Abrigo-me-#17, 2007, acrílico sobre papel, 90 x 90 cm

Abrigo-me-#17, 2007, acrílico sobre papel, 90 x 90 cm

«Artisan d’abord»[i]  ?

                Os desenhos de André Banha são, inquestionavelmente, presenças: inteiros, autónomos. E assim os devemos olhar. Contudo, tratando-se de desenhos de um escultor, é pertinente perguntar: será possível pensá-los sem os remeter para o trabalho de escultura, à volta do qual eles se constroem? Certamente que sim, mas nessa opção perderíamos, possivelmente, uma parte do seu sentido, uma vez que, entre ambas as produções artísticas, se estabelecem intrincadas relações de complementaridade. Não porque os desenhos cumpram uma função explanatória dos objectos – como o faz o desenho do arquitecto,[ii] – ou porque se apresentem como imagens que substituem os objectos já realizados. Eles relacionam-se, efectivamente, com as esculturas – mas obliquamente.

                As esculturas a que aludem os desenhos testemunham integralmente os processos que as configuram. Nestas, a maior parte das escolhas sobre o devir do objecto ocorrem no processo da construção, no confronto sensível com o espaço e nas suas inúmeras decisões.[iii] Mais do que casas, elas são o lugar exposto, visível, provisório a partir do qual o mundo se torna acessível. O aroma áspero da madeira que exala das texturas remete a experiência destes espaços para a terra e para as raízes da árvore mesma de onde surgiram. Não são tanto casas mas abrigos,[iv] torres de vigia, estrategicamente posicionadas para aflorar a superfície habitada do mundo – como aponta a dimensão topográfica dos últimos desenhos. O corpo é tão só o fantasma que materializa e possibilita essa experiência. Por isso são tão relevantes os momentos a partir dos quais, do seu interior, se afloram os espaços visíveis onde o mundo acontece.[v] Também os materiais do desenho mantêm (tal como as esculturas, onde a materialidade da madeira é sustentada na textura não aparelhada) uma relação com a primeira transformação da matéria: o negro orgânico da tinta da china, os ocres terrosos, o viochene (extracto natural de casca de noz tradicionalmente produzido para dar consistência cromática a madeiras claras). Revelam estratos, são construídos por camadas, controladamente. Assim transparece a razão construtiva na produção dos desenhos: definir e delimitar áreas de preenchimento, cobri-las, deixar ver, mais ou menos, o que está por debaixo. Como no corte de uma árvore ou nos sedimentos do solo. Os desenhos revelam essa natureza (particularmente evidente nas últimas séries de desenhos) onde a terra manifesta a sua presença preponderante. Os desenhos estão simultaneamente antes e depois da experiência do objecto: não são as imagens dos objectos que representam; são, absolutamente, outros objectos. Contrastam com as esculturas mas, ao mesmo tempo, prolongam-nas, pois o rigor, a atenção e a intransigência são idênticos. Ambos são exactamente aquilo que podem ser, ali e naquele contexto: instâncias provisórias produzidas para veicular uma ideia de experiência artística. Movem-se num espaço intencionalmente estreito e rarefeito: na escala como nos materiais, na concepção como na produção.

                O universo do trabalho de André Banha é uma equação controlada. Há uma cautela extrema, uma contenção nos procedimentos e nos meios. Tal como as esculturas, os desenhos remetem, tecnicamente, para um lugar rudimentar (que, do ponto de vista do fazer artístico, resulta numa disciplina de complexificação do fazer artístico, numa ‘falsa pobreza’). Uma dimensão artesanal – longe do fascínio da tecnologia ou mesmo da sedução do fine craft – envolve a soma das pequenas decisões que, ao longo do fazer da peça, orientam a direcção do caminho.

                Se os espaços construídos são orientados e concebidos para entrar, percorrer, subir, aflorar, espreitar, já os desenhos tentam outra dimensão: a percepção do acontecimento a partir do exterior. As esculturas iniciais de André Banha revelavam experiências espaciais estruturalmente cenográficas, quase integralmente concebidas a partir do interior – as esculturas apenas pontualmente afloravam o espaço da instalação. O tempo dos desenhos vem coincidir com uma objectificação da exterioridade das peças. O que os desenhos não dizem só pode ocorrer através da experiência da escultura. Por isso não podemos atribuir à planificação dos desenhos uma função de representação. A simplicidade diagramática e neutralizada destes desenhos traduz um nivelamento expressivo dos materiais: as superfícies lisas, a geometria bem regulada dos volumes significa, mais do que aquilo que aquele objecto será ou do que o objecto já é, aquilo que o objecto nunca poderá ser. São espaços desabitados, esparsos, porque só assim parece ser salvaguardada a margem da experiência artística das esculturas. Não há, nos desenhos, qualquer inscrição do gesto da manufactura e das suas hesitações. Trata-se de uma outra manifestação do fantasma. Por isso os desenhos não podem demonstrar senão uma presença simultaneamente diagramática e lacónica.

                Alain dizia que “(…) o movimento natural de um homem que quer imaginar uma cabana é construi-la; e não tem outro modo de a fazer aparecer.” [vi]  Os desenhos não desmentem esta convicção de André Banha.

                Philip Cabau, Novembro  de 2010

 


[i] “Bref, la loi supreme de la invention humaine est que l’on n’invente qu’en travaillant. Artisan d’abord.” Alain, De la Matière, Système des Beaux-Arts, 1920-1931 (N.R.F), Gallimard-Pleiade, Paris 2002.
[ii] Apesar das aparências, não poderia ser mais equívoca a inscrição destes desenhos numa genealogia das representações da arquitectura, particularmente associando-as às imagens da arquitectura modernista do princípio do século XX – como foram fixadas por Gropius, na Bauhaus, ou reveladas no trabalho sistemático de Alberto Sartoris.
[iii] Contudo, o corpo não é aqui, como em Giuseppe Penone, concebido como o agente das inscrições sobre os materiais da natureza que a experiência artística testemunha e regista numa recomposição dos símbolos dessa inscrição – o trabalho de André Banha é, aliás, bem consciente do lugar da sua possível inscrição na topologia da arte contemporânea.
[iv] Não são espaços produzidos para nos esquecermos do corpo no conforto das superfícies, para sentar, deitar, encostar. Nestes abrigos (como o autor os denomina) caminhamos controladamente, suspensos entre a experiência de uma lentidão e o atrito sensível dos passos (a que o chão, nos corredores, rampas ou escadas, responde), o odor da seiva, as presenças da luz exterior que atravessa as madeiras e reflecte a consistência instável e rude da matéria… Percorrer estes espaços implica permanecer sempre dentro dos limites da atenção.
[v] A este propósito poderíamos invocar, a título exemplar, algumas surpreendentes analogias na história da literatura (a cela de Fabrício em A Cartuxa de Parma, de Stendhal) ou do cinema (o botequim de Yojimbo, de A. Kurosawa).
[vi] Alain, ibidem.

Publicado a 26 de Novembro de 2010

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Pieces and Parts
Curadoria Elsa Garcia e Miguel Matos para Umbigo
Vista da exposição "Pieces and Parts"

Vista da exposição "Pieces and Parts"

Artistas: Alexandra Mesquita, Ana Vidigal, Annie  Sprinkle, Carlos Mélo, Clara Games, Cristina Ataíde, Fátima Mendonça, Inês Nunes, João Galrão, Julião Sarmento, Lara Torres, Leonor Hipólito, Lluís Hortalà, Manuela Sousa, Miriam Castro, Miguel Branco, Rafael Canogar, Rui Effe, Sara Maia, Teresa Milheiro e Vladimir Velickovic.

Não é assunto novo na arte moderna e contemporânea. O corpo sempre foi um dos objectos mais “remexidos” pela arte. Desde a “lógica da representação à lógica da participação/interacção, do critério do perfeito ao desafio do inacabado, o corpo na arte decanta-se, miscigeniza-se, desproporciona-se, desequilibra-se, desvaloriza-se, efemeriza-se, órfão do sentido único”[1]. O corpo como realidade física é composto por órgãos, peças e partes visíveis e outras ocultas, apenas imagináveis até à invenção dos métodos e tecnologias médicas de visualização do seu estado interno. Falamos de um corpo que já não o é apenas como um todo, mas também como uma dispersão através da representação das suas partes. Se encarado como objecto estético e metafórico, cada órgão é visto pela sua capacidade iconográfica, seja através da representação realista ou através do rasto da sua passagem ou percepcionado através dos materiais por ele produzido. É uma multiplicidade de imagens que, sendo do corpo, dele já se afastaram. Referem-se ao seu portador, mas vivem de forma autónoma. Estes fragmentos – esta desconstrução – podem constituir um alfabeto, separando as letras da palavra carnal. Cada um deles vive assim em conjunção com outros, coordenados ou não, criando um discurso passível de diferentes leituras que podem ser literais, conceptuais ou poéticas, consoante o observador e o proponente de tais visões. Paradoxalmente, “Pieces and Parts” reune as partes sem nunca se conseguir ver o todo.

            Entre os signos e as próteses, as marcas do desejo e as provas de devoção, o corpo é palco daquilo que o próprio corpo sente e pensa. Um corpo analisado em memórias e fragmentos é o mote para uma exposição em forma de lição de anatomia. Através de objectos representativos das peças e partes que compõem o corpo humano, reune-se uma amostra de diferentes abordagens à sua representação. O conjunto resulta numa visão em desconjunto, afasta-se da totalidade física para atingir uma sucessão de imagens e objectos aparentemente sem sentido mas que sugerem a única coisa que os seres humanos inequivocamente partilham: uma idêntica geografia interna, uma cartografia comum, uma máquina orgânica… A exposição reúne linguagens e técnicas divergentes, como a pintura, a joalharia, a escultura, o vídeo e a instalação de autores provenientes de Portugal, Brasil, EUA, Espanha e Sérvia.

Miguel Matos

 


[1]     BARBOSA, António. Corpo Metafórico in O Corpo na Era Digital. Faculdade de Medicina de Lisboa, Lisboa, 2000.

Publicado a 20 de Novembro de 2010

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Publicado a 11 de Novembro de 2010