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rita Sá, emptyroom, 2008,video 3´,loop, som

Artistas: Ana Telhado, Catarina Patrício, Eduardo Guerra, Jorge Figanier Castro, Pedro Vaz, Rita Sá
Comissária: Luisa Especial

all work and no play: do indício ao travestimento do espaço

Quais os limites entre o que constitui um indício, um vestígio, um sinal, e a verdade dos factos? Em termos literários e cinematográficos, um indício pode desembocar na resolução de uma história, contribuir para um desfecho ou o adensar uma narrativa. Ou, tão-só, manter-se como dado insinuado, nunca concretizado, aberto a um desenlace imaginário. Já um falso indício encaminhará para um rumo enganoso. Em termos clínicos, consiste num dado da história clínica que levará a um diagnóstico. O indiciado é um réu pronunciado criminoso, pela soma dos indícios que culminam na sua acusação. No contexto da análise semiótica, corresponde à classe dos signos que mantêm uma relação causal de contiguidade física com aquilo que representam.
O sótão da Plataforma Revólver foi, no passado, moldado com o objectivo de tornar-se uma casa, subvertendo a estrutura original de inabitabilidade. Concluída esta operação, ficaram visíveis as costas das frágeis paredes compostas por gesso e sarrafos de madeira. Enquanto casa, foi habitada por artistas, que dela fizeram também o seu atelier. Manteve-se, nesta modificação funcional, o âmbito artístico, onde a esfera privada deu lugar à pública. Transformado em 2006 em espaço expositivo, as marcas vivenciais são, neste lugar, indeléveis. De uma exposição para a outra sedimentam-se impressões físicas como pregos, mossas e pingos de tinta no chão.
A consciência de um espaço cunhado por marcas indiciais de natureza artística e habitacional foi o detonador destes trabalhos, metade dos quais site specific. O fio condutor das obras é, pois, o conceito de indício, nas suas diferentes acepções. A questão da identidade do espaço num sentido mais lato – e já não necessariamente adstrito ao espaço físico da casa de partida – veio a assumir um papel preponderante.
Cada novo inquilino altera a identidade do espaço nas metamorfoses que lhe administra. Esta exposição, para a qual o espaço se traveste uma vez mais, legará também, por certo, vários indícios físicos. E, desejavelmente, sedimentar-se-á a memória das obras dos artistas na história do lugar.

Luísa especial

Publicado a 24 de Setembro de 2008

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S/Título, 2008, guache e grafite s/papel, 129x115 cm

S/Título, 2008, guache e grafite s/papel, 129x115 cm

A disciplina do desejo

Pensar o desenho, quando não se trata de comentar o que se revela nas próprias linhas ou na estrutura de um conceito, é uma forma de pensar a disciplina necessária para lidar com o desejo. Nuns casos é evidente a intenção consciente de explorar mais a firmeza da forma, noutros a de dar o máximo de liberdade à expressão do corpo que se grafa; porém, é no tipo de tensão, entre aquele que faz e o que resulta feito, que se manifesta a distância conseguida relativamente à vertigem da potência. É uma operação que faz parte do drama intrínseco ao artista — presumindo a adequada apropriação das gramáticas do seu métier —, mas é também o cerne do trabalho de si; regular a intensidade, quantas vezes abafar, dessa pulsão ou potência.

De Bartleby, personagem de H. Melville, diz Agamben, que vem para “salvar o que não aconteceu” — ou libertá-lo, como quase sugere, em anagrama, o nome escolhido para o escriba. De facto, extrapolando um pouco da sua Poética, é assim que Aristóteles aborda o seu conceito de arte; segundo este, ela ocupar-se-ia do que poderia ter sido. Potência irrealizada, imprevista e imprevisível antes de se dar, é, também, o desejo que emerge, já domado, no fazer do criador.

Da transformação, necessariamente individual, que a formação técnica e histórica implica em cada um (mediada pela constante prática do exercício), veículo para a libertação ordenada dessa energia, resulta a modalidade disciplinar posterior. No entanto, esta desenvolve-se, não porque a aquisição das formas disciplinadoras, ainda que apreendidas na sua inteira significação, acrescentem mais ou outra energia a uma prévia — naturalmente, a que garante a existência — mas porque, exactamente, já havia outra que elas tornam evidente; a que permite tanto o preferirei não de Bartleby como tudo aquilo que poderia ter sido. É o que pode estar/dar a mais, ainda que seja uma recusa ou uma ausência, que distingue o excepcional.

Se na obra anterior da C.R. já se sente a dinâmica do desejo (e o des-tecer das marcas que suporta — por exemplo, as do feminino, na litania do lamento pela palavra que se prolonga), a presente ocasião serve, de modo privilegiado, para que se possa apreciar o rasto, laborioso e paciente, da libertação dessa potência. Quase à vista na superfície do papel, figuradamente, sente-se o esforço disciplinado da vontade, exercido contra (antes) e sobre (após) esse excesso que transborda, ainda se domado, em aveludados blocos opacos — desejo já malhado na bigorna do rigor.

Mesmo se há ‘desejo de disciplina’ ele será sempre segundo, como a própria disciplina, em relação à potência excepcional; ambos são manifestação do mesmo, i.e., aspectos ou estados dessa energia, contudo, em diferentes níveis. É no saber dessa diferença, o que implica o respeito pelos domínios que lhes são específicos, que se elabora o trabalho do desejo — de incorporação ou de inscrição. O que sobra como obra, enquanto marca ou traço, é uma sombra da sua realização (ou resolução) na própria vida como trabalho de si.

Manuel Rodrigues

Publicado a 24 de Setembro de 2008

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Sans Image
ANA CARDOSO
Untitled, 2008, acrílico, colagens e pigmentos sobre tela de algodão, 193x176 cm

Untitled, 2008, acrílico, colagem e pigmentos sobre tela de algodão, 193x176 cm

“What does Rousseau say without saying, see without seeing? That replacement has always already begun; that imitation, principle of art, has always already interrupted natural plenitude; that, having to be a discourse, it has always already broached presence in difference; that in Nature it is always that which supplies Nature’s lack, a voice that is replaced by the voice of Nature.”

Falar sobre imagens nunca é fácil. As palavras e as imagens são inimigas íntimas. No início eram o mesmo, as palavras eram imagens. Símbolos. Mas essa unidade teológica do objecto material com o seu correspondente transcendental foi violentamente interrompida com a invenção do alfabeto. Depois disso mais nada foi o mesmo. Platão ainda fez uma tentativa de reconciliação ao escolher “eidos”, literalmente a silhueta exterior que um objecto oferece aos olhos, para significar “ideia”. Infelizmente, qualquer mudança que se faça ao nível da supra-estrutura nunca afecta a infra-estrutura. Mas Platão não era versado em marxismo, e tudo o que conseguiu foi distorcer a anterior unidade simbólica numa relação entre aparência e essência. A história dessa relação é a história da arte. Todas as imagens que se inscrevem dentro dessa relação fazem parte da história da arte e descrevem todas as formas possíveis que esta pode assumir. Fora da história da arte fica o resíduo da anterior unidade, aquilo a que a antropologia chama crenças animistas e a que a psicanálise chama o estado narcísico de omnipresença do pensamento; bonecos de vudu e kitsch cultural. Para nós, que sabemos perfeitamente que um significante não é idêntico ao objecto que significa, excepto quando ocasionalmente escrevemos o nome de alguém num banco de jardim, é também evidente que nenhuma palavra ou imagem tem algum poder sobre aquilo a que se refere. Excepto obviamente o facto de o representar. Naturalmente esta nova World Order estabelece uma hierarquia na qual as imagens são sempre o nível mais baixo. Afinal, conhecer significa possuir mesmo se essa posse for uma posse imaterial, como uma tomada de posse da consciência. Assim, em arte normalmente a questão não se coloca tanto entre produzir imagens que se possam analisar discursivamente mas em produzir imagens que contenham já o seu próprio subtexto. Por outras palavras imagens cuja função é a de evocar um discurso, anulando-se subsequentemente como imagens para que esse discurso possa tomar o palco. Todas essas imagens escondem no entanto um acordo secreto com o seu público, um pacto subentendido de se referirem às suas expectativas. Essas imagens não têm nesse sentido um destino como imagens, se como “destino das imagens” entendermos a criação de discenso, a interrupção da ordem discursiva e dos protocolos de representação.
I will have spent my life trying to understand the function of remembering, which is not the opposite of forgetting, but rather its lining. We do not remember, we rewrite memory much as history is rewritten.
Diz o narrador fictício de Sans Soleil. Em Sans Image Ana Cardoso, tentando compreender a função da representação, encontra precisamente uma possibilidade de abstracção que não é o oposto de representar mas sim o seu substrato. Através dessas imagens negativas podemos aceder ao negativo da produção de sentido. Não ao ponto onde todo o sentido é negado mas onde este é a cada instante reescrito e sempre se recusa a estabilizar.

Ana Teixeira Pinto
Berlim, Setembro 2008

Publicado a 20 de Setembro de 2008