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Do começo ao fim
DANI SOTER

Dani-Soter_Do-começo-ao-fim_trans

“Há um silêncio dentro de mim”
Clarice Lispector [i]

Essencialmente esse conjunto fotográfico, que a artista Dani Soter intitula de Do começo ao Fim, reflecte sobre a construção e desconstrução ou aquilo que Vilém Flusser [ii] propôs na sua abordagem sobre o meio fotográfico quando sugere uma análise dos aspectos estéticos, científicos e políticos que a fotografia pode conter. Para Flusser a fotografia é, às vezes, a chave para uma pesquisa sobre a actual crise cultural e as novas formas existenciais e sociais que, a partir dela, estão cristalizando-se. Flusser no capítulo quarto – intitulado de O gesto de fotografar – compara os movimentos de um fotógrafo a um movimento de um caçador. Na antiguidade, o gesto do caçador do Paleolítico que perseguia a caça transforma-se na actualidade no gesto do fotógrafo que se movimenta na floresta densa da cultura. A selva aqui consiste em objectos culturais, portanto de objectos que contém intenções determinadas. Ao fotografar, o fotógrafo avança contra as intenções da sua cultura. Por isto, fotografar é gesto diferente, conforme ocorra em selva de cidade ocidental ou cidade subdesenvolvida, em uma sala de estar ou campo cultivado, num espaço vivo ou em ruínas, o gesto será sempre diferente pois estará inevitavelmente condicionado ao modus de olhar do fotógrafo. Decifrar fotografias implicaria, entre outras coisas, no decifrar das condições culturais.

As possibilidades fotográficas são praticamente inesgotáveis pois tudo o que é fotografável pode ser fotografado. A imaginação é praticamente infinita. A imaginação do fotógrafo, por maior que seja, está inscrita nessa enorme imaginação do aparelho, nas palavras do filósofo. Aqui está, precisamente, o desafio. O fotógrafo navega por regiões nunca dantes navegadas para produzir imagens jamais vistas: imagens “informativas”. O fotógrafo caça, a fim de descobrir visões até então jamais percebidas. No caso do fotógrafo, resulta apenas na fotografia. Isto explica porque nenhuma fotografia individual pode efectivamente ficar isolada: apenas séries de fotografias podem revelar a intenção do fotógrafo. Como uma arqueóloga, Dani Soter regista pormenores esquecidos de espaços que um dia foram profícuos e que hoje são nada, apenas rastos e restos da crise institucional que se abateu sobre a sociedade. Aqui e ali vai colectando imagens mínimas na sua mínima capacidade escultórica: 

Um livro com anotações…
Uma folha de papel amassada…
Uma folha de papel escrita com a data de 10 de Agosto de 1909…
Uma mesa de escultura onde jaz uma cabeça de gesso…
Uma atadura de gaze…
Uma escada com pó branco…
Um carrinho transportando uma pedra…
Tecidos brancos molhados sobre montanhas de barro…

Essas imagens fazem-me lembrar as studioworks de Eva Hesse, ambas falam de uma existência quase invisível, imateriais na sua brancura descarnada. Entretanto essas imagens guardam ainda memórias que o tempo não consegue apagar, fazem-nos ouvir o alarido das vozes de outrora; sentir os vapores corporais grudados as paredes, resultado do esforço de outrora; os gestos indeléveis que se perderam. Essas imagens de esquecimento têm como força motriz o tempo, o verbo e o silêncio.

Tais considerações permitem-nos elocubrar o gesto de Dani Soter de fotografar ruínas e um atelier de escultura vazio como o gesto do caçador.. O propósito desse gesto unificado é produzir fotografias, isto é, superfícies nas quais se realizam simbolicamente cenas. Estas significam conceitos programados na memória do fotógrafo. A realização se dá graças a um jogo de permutação entre os conceitos, e graças a uma automática descodificação de tais conceitos permutados em imagens. A estrutura do gesto é quântica: série de hesitações e decisões claras e distintas sobre a memória de outros. O motivo do fotógrafo, em tudo isto, é realizar cenas jamais vistas, “informativas”. O interesse do fotógrafo está concentrado no espaço-tempo-memória. O resultado do gesto fotográfico congrega, para além do seu valor artístico, o valor estético, científico e político pois são uma espécie de superfície palpável daquilo a que chamamos memória. Do começo ao fim é este arquivo de sensações oferecido por Dani Soter. Há um silêncio em cada um de nós, como está na epígrafe deste texto, alguns o transformam em arte

Paulo Reis

[i] Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, Rio de Janeiro: Rocco.

[ii] Filosofia da Caixa Preta – Ensaios para uma futura filosofia d a fotografia (Für eine Philosophie der Fotografie); tradução do autor; São Paulo: Editora HUCITEC, 1985

 

Dani Soter ( Brésil, 1968), est diplomée en Langues et Civilisations Etrangères ( Sorbonne, Paris). Elle expose depuis 1995. En 1997 Dani Soter a reçu le prix spécial du jury du VII Photographic Art Exhibition de Pékin, Chine. Depuis, l’artiste expose à Paris, Nice, Brasilia, Rio, São Paulo, Buenos Aires et Bogota.

Il y a un silence en moi
Clarice Lispector [i]

Cet ensemble photographique de l’artiste Dani Soter, intitulé “du Début à la Fin”, refléchit essentiellement sur la construction et la déconstruction ou sur ce que Villem Flusser a proposé dans son étude sur le médium photographique quand il suggère une analyse des aspects esthétiques, scientifiques et politiques que la photographie peut contenir.Pour Flusser la photographie est, parfois, la clé pour une recherche sur l’actuelle crise culturelle et ses nouvelles formes existentielles et sociales qui se cristalisent à travers elle.Flusser, dans le 4ème chapitre – intitulé Le geste de photographier– compare les mouvements d’un photographe aux mouvements d’un chasseur
Le geste du chasseur du Paléolitique qui poursuivait la proie se transforme, aujourd’hui, dans le geste du photographe qui se meut dans la jungle dense de la culture.
Ici la jungle ce sont des objets culturels, donc des objets qui contiennent des intentions déterminées. En photographiant, le photographe avance contre les intentions de sa culture.
Pour cela, photographier est un geste différent, comme dans la jungle d’une ville occidentale ou du Tiers Monde, dans une salle-de-séjour ou dans des champs cultivés, dans un espace vivant ou en ruines, le geste sera toujours différent car il sera inévitablement conditionné par la façon de regarder du photographe.
Déchiffrer les photographies serait, entre autres choses, déchiffrer les conditions culturelles.
Les possibilités photographiques sont pratiquement inépuisables car tout peut être photographié.L’imagination est pratiquement infinie. L’imagination du photographe, aussi grande soit elle, est inscrite dans cette immense imagination de l’appareil, selon les mots du philosophe.Voici, justement, le défi.
Le photographe navigue dans des régions jamais explorées pour produire des images encore jamais vues: des images “informatives”.Le photographe chasse, afin de découvrir des visions jusqu’alors jamais perçues. Pour le photographe, cela ne s’obtient que par la photographie. Cela explique pourquoi aucune photographie individuelle ne peut, effectivement, être isolée: seules des séries de photographies peuvent révéler l’intention du photographe.Comme une archéologue, Dani Soter enregistre des détails oubliés d’ espaces autrefois productifs et qui aujourd’hui ne sont plus rien, seulement des traces et des restes de la crise institutionelle qui a atteint la société. Ici et là, elle recueille des images minimales dans leur minimale capacité sculpturale:

un livre de notes
une feuille de papier froissée
un mur avec, écrite, la date du 10 août 1909
une table de sculpture où gît une tête en plâtre
un bandage
un chariot qui transporte une pierre
des tissus blanc mouillés sur des tas de terre…

Ces images me font penser aux studioworks d’Eva Hesse. Elles parlent toutes les deux d’une existence presqu’invisible, immatérielles dans sa blancheur désincarnée.Cependent ces images gardent encore des mémoires que le temps n’arrive pas à effacer. Elles nous font entendre l’écho des voix d’autrefois.Elles nous font sentir les vapeurs corporelles collées aux murs, résultat d’un effort  passé et les gestes ineffaçables qui se sont perdus.Ces images de l’oubli ont comme force motrice le verbe et le silence. De telles considérations nous permettent d’identifier le geste de Dani Soter photographiant des ruines et un atelier de sculpture vide au geste du chasseur. Le but de ce geste unifié est de produire des photos, cést-à-dire, des superficies sur lesquelles se réalisent syboliquement des scènes. Celles-ci signifient des concepts programmés dans la mémoire du photographe. La réalisation est faite grâce à un jeu de permutation entre les concepts et grâce à une décodification automatique de tels concepts transformés en images. La structure du geste est quantique: une série d’hésitations et de décisions claires et distinctes sur la mémoire des autres.
L’intérêt du photographe est concentré sur l’espace -temps-mémoire. Le résultat du geste photographique rassemble, au délà de sa valeur artistique, les valeurs esthétique, scientifique et politique, car elle est une sorte de superficie palpable de ce qu’on appelle la mémoire.
“du Début à la Fin” est cette archive de sensations, offerte par Dani Soter. Tel l’épigraphe de ce texte, il y a un silence en chacun de nous. Certains le transforment en art.

 Paulo Reis

[i] Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, Rio de Janeiro: Rocco.
[ii] Filosofia da Caixa Preta – Ensaios para uma futura filosofia d a fotografia (Für eine Philosophie der Fotografie); tradução do autor; São Paulo: Editora HUCITEC, 1985

*Paulo Reis est diplômé en Théorie et Critique d’Art (DEA) de l´Ecole des Beaux Arts de l’Université Fédérale de Rio de Janeiro (Brésil) avec une spécialisation en Art Contemporain de l’Ecole du Louvre, Paris (France). Il est co-fondateur et Directeur du Carpe Diem Arte e Pesquisa, centre international d´art à Lisbonne

Publicado a 17 de Abril de 2010

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Untitled-5-copy

“…I have reached these lands but newly
From an ultimate dim Thule
From a wild weird clime that lieth, sublime,
Out of SPACE – out of TIME.”
Edgar Allan Poe, “Dreamland”

“…From matter and light, evidenced in solid and shade.
There is a twofold Silence – sea and shore –
Body and soul. One dwells in lonely places…”
Edgar Allan Poe, “Silence”

Algumas reflexões, desenvolvidas por Edgar Allan Poe em Marginalia (1849), foram premonitórias, antecipatórias quanto aos caminhos cumpridos pelo pensamento filosófico no séc. XX. A sua abordagem prenunciadora incidiu, destacando-se neste contexto, o relativo aos conceitos de espaço e tempo, antes do aprofundamento elaborado pela Fenomenologia da percepção – em particular nos escritos de Gaston Bachelard e Merleau-Ponty. Também na argumentação, relativa à definição de “imagens psíquicas”, o autor americano foi (em certa perspectiva) um precursor de Freud, explanando as acepções da “memória” e das imagens mentais”, mencionando-se as mais relevantes.

Avançando, numa leitura focalizada, quer da obra poética, quer dos textos de ensaio crítico e filosófico, designadamente no citado Marginalia, os pressupostos organizam-se, denotando coerência e lucidez. Marginalia são aquelas notas escritas nas margens dos livros, pequenos textos publicados, em diferentes revistas americanas entre 1844 e 1849, pelo próprio escritor nesses derradeiros anos da sua vida. Incidem sobre tópicos diversificados – notas de leituras, análises incidindo sobre a filosofia, a moral, as ciências, a linguagem, a arte da ficção e mesmo, reflectindo ainda sobre as dificuldades (incompreensão, inadaptabilidade) com que então os artistas se deparavam na sociedade. São textos de escrita fluida (denotando erudição significativa), organizados numa explanação de tópicos singulares; devidamente concatenados e concentrando numa extensão concisa raciocínios e juízos perspicazes e consequentes. Acreditava que uma escrita de qualidade deveria ser breve, concentrando-se num resultado específico e ímpar. Frequente a sua fundamentação na filosofia grega, recorrendo ao simulacro dos diálogos platónicos (caso de “Colóquio de Monos e Una” e “Conversa entre Eirós e Charmion”), remetendo para uma assunção metafísica que não é, de todo, inconciliável ao visionarismo fenomenológico ou psicanalítico, antes lhes confere ancestralidade e “espessura”.

 No referente ao conceito de tempo afirma que dele temos consciência a partir do acumulo de acontecimentos. O que, todavia, não corresponderá à mais genuína assunção da experienciação/percepção, pois o tempo não é apenas uma “sucessão de acontecimentos”. Entende que os acontecimentos sejam o que nos permite a (consciência da) percepção do tempo, daí inferindo-se, por vezes, erradamente, que o “tempo seja/é a sucessão dos acontecimentos.

                                   “Nous n’avons pas conscience du temps que par les seuls événements. C’est la raison pour laquelle nous définis sons   le temps (de façon quelque impropre) comme une sucession d’événements; mais le fait luimême que les événements soient le seul moyen que nous ayons d’appréhendre le temps a tendance à en gendrer l’idée erronée selon laquelle les événements sont le temps.”1

 Os pressupostos epistemológicos para a definição de espaço são análogos. Ou seja, será através da presença dos objectos que temos consciência do espaço, definindo, consequentemente como “sucessão de objectos”.

                                   L’espace est rigoureusement analogue au temps. C’est seulement par les objets que nous avons conscience de l’espace, et nous pourrions avec autant de raison le definir comme une sucession d’objets.”2

A colocação dos objectos, em áreas expandidas e não circunscritas, adquire a sua delimitação pelo conceito de restrição – entenda-se pela demarcação de contornos, dentro de uma área anteriormente não confinada, que passa a sê-lo pela fisicalidade dos objectos em si, porque existe um sujeito que sabe/pode percepcioná-lo.

A noção de espaço é adquirida pela exploração que o sujeito realiza através do seu corpo próprio, encontrando os seus limites, a sua conformação em diálogo consigo mesmo e com os outros – incluam-se os objectos no espaço. O mesmo se aplique à acepção fenomenológica de tempo: os acontecimentos não se reduzem ao vivido (percepcionado) a partir de outrem, mas através do sujeito em si, no confronto com a sua vivência, coordenando distintas acepções, onde passado, presente e futuro são cúmplices.

“Por outro lado, quando o acordar é acompanhado da lembrança de visões – como por vezes acontece – é preciso considerar que a alma está num estado que lhe asseguraria a sobrevivência após a morte corporal, a felicidade ou a miséria da existência futura, sendo indicada pela natureza das visões.”3

Em complementaridade, E. A. Poe realça a dimensão não materializante do sujeito pessoal, esse período onde o espírito parece, por instantes, destacar-se do corpo, transcendendo-se. Pode relacionar-se esta perspectiva com os fundamentos da triunica choreia, advinda da tradição dos cultos órficos e dionisíacos onde se pretendia atingir um estado de transe, de suspensão da fisicalidade do corpo em prol de uma vivência espiritual, desagrilhoada de constrições e opressões (de natureza física repercutindo no espiritual).

                                                          “Dans la vie de chaque homme, il survient au moins une époque où l’esprit semble un court moment se de tacher du corps, et, s’élevant audessus des preoccupations mortelles, au point d’en avoir une vue compre hensive          et générale, apporte en toutes circonstances une appreciation de son humanité, aussi exacte que possible, à cet esprit particulier.”4

 

Os 5 ARTISTAS em MARGINALIA – d’aprés Edgar Allan Poe

                                               “Finalmente, a escada do sótão, mais abrupta, mais gasta, nós a subimos sempre. Ela traz o signo da ascensão para a mais tranquila solidão.” 5

 As obras dos 5 artistas presentes em Marginalia – d’aprés Edgar Allan Poe espelham, tornam visíveis, audíveis…quer as efabulações que anunciam o mundo das “imagens psíquicas” e/ou das imagens-memória…memória/mentais”: Brígida Baltar, Susanne Themlitz e Jorge Abade, quanto a acuidade depurativa adstrita à reavaliação, reconstrução conceptual e estética dos conceitos de tempo e espaço: Pedro Tudela e Mauro Restiffe. Todavia, e considerando a especificidade arquitectónica da Plataforma Revólver, os 5 artistas reafirmam a plasticidade e flexibilidade do mesmo, preservando – em acção mútua – todas as acepções identitárias envolvidas, ou seja: a identidade de si mesmo como autores/artistas; a identidade das obras presentes e a identidade do referido espaço expositivo.

Saliente-se que, o facto de a curadoria ser pensada ab initio para um local, originariamente com funcionalidades adstritas a “sótão” (na nomenclatura fenomenológica mas também decorrente da funcionalidade quotidiana societária) propicia as diferencialidades anteriormente mencionadas e que se entrecruzam, pois as “revêries”, os deavaneios, as fantasias (…) de Brígida Baltar, Susanne Themlitz e Jorge Abade exploram igualmente o espaço físico (e arquitectural) através da assunção dos seus objectos míticos, simbólicos ou arquetípicos, tanto quanto propagam as noções de percepção de tempo linear, mítico e/ou onírico – legitimando, portanto, as ambiguidades subjacentes à confluência entre imaginário, objectualização, matericidade…assim como todas as plausíveis derivações e interpretações que o público queira…

A apropriação (leia-se cativação) do espaço – e intrinsecamente a cativação/percepção do tempo – nas fotografias de Mauro Restiffe iludem o reconhecimento arquitectural, destemporalizando-o. Assim, ficará visibilizada a acepção questionada por Edgar Allan Poe, antes explanada. Finalmente, a instalação de Pedro Tudela – concebida propositadamente para o “sótão” da Plataforma Revólver, exprime singularmente essa acepção de Bachelard quanto nos seus “ninhos” se concentra o mundo todo. O concerto/performance que Pedro Tudela irá realizar, evento efémero quando da “finissage” da mostra, associado aos conteúdos presenciais durante o período em que Marginalia estará patente, conduzem-nos, impulsionam-nos, na transferência de conceptualidades espacio-temporais, promovendo sinergias psico-afectivas e ideológicas.

                                   “…”Art”, je l’appellerais la “reproduction de ce que les sens perçoivent dans la nature à travers le voile de l’âme”. 6

A diversidade de géneros literários, bem como o âmbito e afectação a áreas de conhecimento múltiplos, caracterizam a produção de Edgar Allan Poe: poesia, contos/ficção, ensaios, textos filosóficos (aforismos) e de crítica literária. Procurando-lhe um denominador comum, atenda-se a que o texto literário se define pela força psíquica exercida sobre o leitor – o que lhe confere autonomia no campo da escrita e lhe outorga consistência. Em E. A. Poe, mais do que um posicionamento esteticista consignado ao lema “l’ art pour l’art”, em que o poema fosse considerado per se, enquanto forma (e quase nada mais), considere-se que é na alma (campo psíquico total) que se desencadeia a evidência do valor intrínseco poético. A alma aspira a ser invadida totalmente pela linguagem e o poema é apenas esse local/lugar psíquico, onde se respira – em dissonância – consciente e inconsciente, onde se conclui a junção entre o mental, o psíquico e o físico. Sublinhe-se que em Marginalia (1849), E. A. Poe afirma a oposicionalidade entre o “psíquico” e o “mental” e, em Princípio Poético, constata-se menção do psíquico como associado à alma.

A ambiguidade semântica, epistemológica potencializa a criação, tanto como estimula a recepção, por parte do leitor/espectador. O prazer poético é um prazer misturado de tristeza, pois é constituído por alegrias estéticas apenas “entrevistas”, precisamente, através do poema.
E. A. Poe celebrava, genuinamente e sem exclusão, no poder das palavras em que cabia acreditar e na realidade evanescente de suas efabulações/fantasias e ficções.

                                    “Um pouco menos de exactidão deixar-nos-ia ficar com um pouco mais de cérebro.”16

 Poder-se-ia transladar para as obras visuais este dimensionamento poético: a fotografia, o vídeo, a escultura, o desenho, a instalação possuem uma estrutura (à semelhança da estrutura linguística) onde a alma irradia entre volumes, cores, formas devidamente fundados em conceitos como: efabulação, quimera, fantasia… Todos esses devaneios oníricos e divagações exigem – por coesão e lucidez – serem resultantes de ideias e princípios estabelecidos e consequentes.
A austeridade pode fundamentar, quer a mais justa racionalidade, quer a imaginação mais divergente. Edgar Allan Poe não pretendeu enunciar, nem construir um conhecimento definitivo ou estanque; a sua intencionalidade cognitiva fundava-se na potencialidade intuitiva acumulando uma capacidade retórica transversal: “Saber não é possível. Todavia, existe uma similitude de conhecimento – um conhecimento fictício; é esse conhecimento de que a vida foi, que impede a pessoa de julgar a coisa em função dos seus méritos.” 17

 Maria de Fátima Lambert

 

 1. Edgar Allan Poe, Marginalia, Paris, Ed. Allia, 2007, p.22 (o sublinhado é nosso)
2. Idem, ibidem, p.23 (o sublinhado é nosso)
3. Edgar Allan Poe, Poética (Textos Teóricos), Lisboa, FCG, 2005, p.43
4. Edgar Allan Poe, Marginalia, p.124
5. Gaston Bachelard, A Poética do Espaço, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p.43
6. Edgar Allan Poe, Marginalia, p.103

Publicado a 17 de Abril de 2010

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Play Them
LUÍS ALEGRE
Luís Alegre, Super homem, desenho animado, DVD vídeo, cor, 3'', loop, 2010

Luís Alegre, Super homem, desenho animado, DVD vídeo, cor, 3'', loop, 2010

Artistas convidados: José Maças de Carvalho e António Olaio

Não constitui uma grande novidade que nos últimos anos tem havido uma proliferação de filmes que utilizam o computador como tecnologia de animação para a criação de efeitos que pretendem ser extremamente realistas. Esses efeitos têm, entre outras particularidades e virtualidades, a capacidade de diluírem a linha entre a live-action e a animação, entre a realidade e a fantasia. Os mundos imaginados em filmes como o Matrix, Tomb Raider, Final Fantasy ou Avatar embora envoltos em discussão, tive­ram e têm a capacidade de alterarem, de forma mais ou menos profunda, a nossa experiência e a compreensão que fazemos das histórias, mas tam­bém dos nossos corpos, dos objectos e, porque não, da nossa realidade.

Este projecto que agora propomos pretende explorar, entre outras coisas, a relação entre o “animado” e o “real”, entre os desenhos e a live-action e, em particular, mas talvez de forma menos evidente, a relação entre os organismos de animação e de outros organismos que possuem mais carne e substância.
Embora o discurso académico e popular tenda a colocar a anima­ção directamente no reino do imaginário, o que pretendemos é especular acerca de uma propriedade atribuível à animação, em maior ou menor grau, a de que ela desempenha sempre um papel de negociação entre o real e a realidade construída, representada ou inventada.
Na verdade as alterações, muitas vezes ambivalentes, impostas ao estatuto do “real”, em animação tendem a ter um impacto significativo so­bre a forma como experienciamos a própria animação e o corpo animado.
Talvez seja inegável que à imagem animada lhe falta uma relação privilegiada com o “real”, atribuída normalmente a processos mais auto­máticos, como a fotografia.
A grande maioria da teoria da fotografia demonstra que são estas propriedades da imagem fotográfica que lhe dão esse privilégio. A ideia que fica é a de que o processo fotográfico envolve uma transferência da realidade do objecto original para a sua cópia. A fotografia enquanto ema­nação do referente, de um corpo real que estava lá e que através deste processo se liga por uma linha invisível (luz) ao corpo da coisa fotografada e simultaneamente ao nosso olhar.
O interessante desta ideia reside no facto de a fotografia constituir um dispositivo, que embora resulte numa cópia, está mais próximo do ori­ginal, e, dessa forma, do “real”, que é descrito através dos sentidos em termos materiais, mais do que em termos visuais ou estéticos.
Será, então, o contacto físico da fotografia com o original que lhe atribui todo o poder e não a sua mera verosimilhança.
Embora a ligação privilegiada ao “real” também possa ser atingida por live-action, esta é, através da animação, aparentemente negada mas não completamente banida. Talvez, pelo menos até certo ponto, a ligação do material e do sensorial entre imagem e original seja mantida na anima­ção, pese embora o emaranhado de metamorfoses e conexões. Em vez de confiar no corpo material, único, do original, como a fotografia, a ideia é que a animação é capaz de desenhar múltiplos originais, mesmo que para isso se veja obrigada a recorrer, por exemplo, a modelos/actores previa­mente filmados.
Contudo, um corpo animado constitui um objecto híbrido, não só porque é realizado através do olhar de quem anima, da suas memórias, das suas referências e da sua forma de desenhar, mas também da sua experiência pessoal enquanto espectador, factos que acabam por lhe con­ferir múltiplas perspectivas e complexidades.

Pensemos a esse propósito na forma como consumimos o corpo ani­mado – não só através do cinema ou da televisão, mas também através das histórias em BD, videogames… e como todos esses media evocam uma materialidade hibridizada que funde corpos, meios de comunica­ção, tecnologias, num jogo que mistura diferentes registos do “real” e do “fantástico”

Nesse sentido PLAY THEM reúne, numa instalação, um conjunto de trabalhos de desenho (criados digitalmente e reproduzidos pelo processo de serigrafia) e de desenho animado (materializados em suporte vídeo).
Trata-se de uma análise exploratória do desenho enquanto tecno­logia de representação, seja ela a memória, o corpo, o movimento ou qualquer outra…
Em alguns dos trabalhos apresentados essas representações con­cretizam-se em sequências curtas de desenho animado, em loop. A matéria de base foi na sua grande maioria retirada do universo do ci­nema e do vídeo vernacular. Usando uma tecnologia chamada rotoscopia redefiniram-se as imagens e as formas, anteriormente de representação fotográfica.
O que se pretende especular neste projecto, entre outros assuntos, é o facto de a animação e o desenho estarem constantemente a negociar o seu lugar entre o real e o fantástico, entre o animado e o real, e que essa relação é fundamental para a nossa experiência e sobretudo a nossa expe­riência do corpo animado.
É por estas razões e também (não menos importante) pela admira­ção e amizade pessoal que nutro pelos artistas plásticos José Maçãs de Carvalho e António Olaio, e pelo designer gráfico Rui Garrido, e obvia­mente pelo trabalho que têm desenvolvido, que os convidei a participar neste projecto. A complementaridade das suas obras no que diz respeito aos temas principais deste projecto — as questões da imagem, da fotografia, do ví­deo, a sua relação com o “real”, o seu valor de cópia e/ou o seu eventual apagamento referencial, a apropriação e as referências ao universo do ci­nema, a repetição e o uso da linguagem, etc. – assuntos que me parece ver tão bem explorados pelos projectos do José Maçãs de Carvalho, mas também as questões do corpo e do seu movimento/animação, do som/música e da representação/actuação; isto é: o sentido performativo que vejo tão clara e eficazmente explorados na obra do António Olaio. Mas também a insistente valorização, pelo Rui Garrido, da manualidade (na era digital), nos valores e importância do desenho e da caligrafia e, claro, a sua inigualável perspicácia gráfica.
Mas este projecto, não se cinge apenas às obras instaladas na galeria. O catálogo constitui mais uma extensão deste projecto e um documento que pretende ser o embrião de um livro mais ex­tenso (a editar em parceira com a Universidade Lusófona) onde se reunirá informação útil e pedagógica, contribuindo de forma teórico-prática para a reflexão intelectual e artística acerca do (re) conhecimento das questões inerentes à “animação”.

É nesse sentido que temos em mãos a elaboração de um livro que compilará ensaios de autores portugueses (alguns já presentes nesta edição: Fernando Poeiras, Lígia Afonso, Nuno Aníbal Figueiredo, Patrí­cia Gouveia, Paulo Viveiros), que com amizade aceitaram escrever textos originais, especialmente para este projecto; e um conjunto de ensaios de autores estrangeiros que pela sua pertinência nos parecem essenciais constarem dessa futura obra.

Luís Alegre

Publicado a 17 de Abril de 2010