24
Set
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7
Nov
Do Subterrâneo Opaco
JOÃO GONÇALVES
Imagem-de-divulgação
 

Se a sala em que nos encontramos estivesse às escuras, discutir a cor do tecto, só seria efectivo enquanto suposição. Primeiro, porque a qualidade cromática de um objecto, o tecto neste caso, depende directamente da matéria luminosa sobre ele incidente, que estaria ausente, segundo porque dizer-se que o tecto é branco, pressupõe que haja um padrão de comparação -isto é branco- a partir do qual podíamos afirmar : o tecto é branco. À semelhança do que se passa com o rio, exemplo mais corrente e visível durante o dia de uma das janelas desta mesma sala, acordar sobre a cor de um objecto depende então da luz, e de um padrão comum que permita afirmar que o tecto é branco e o rio azul e não, ao invés, pérola ou verde, ou seja, precisamos de um padrão que adjudique o acordo, e da luz como condição da prova ; Por outro lado, podíamos concordar se aceitássemos uma simples précondição -um tecto é sempre branco-, -um rio sempre azul- hipótese para a qual não mais precisávamos de luz. Donde se conclui que a luz enquanto metáfora da verdade não é suficientemente operativa. No entanto, é fácil perceber o quanto a luz é culturalmente indissociável da noção de verdade. Assume-se que esta existe, que é exterior ao sujeito, por isso objectiva, e que permanece obscura até que a razão a ilumine.
                                                                        
“Como é que se consegue ver a escuridão ? “ i

A forma como continuamos a valorizar o racional, é herdeira de um princípio equalitário que efectivamente procurou na razão um factor agregador e que hoje, se pode encontrar no entendimento que se dá á objectividade como factor universalizante. O problema de uma noção de verdade objectiva, tem evidentemente consequências sobre a forma como se estrutura a possibilidade de haver conhecimento, para além de mim, exterior a mim, o que tendo sido remetido para a ideia de deus no passado, é hoje explorado pela ciência enquanto discurso cultural. Assim, ainda que tenhamos condições de perguntar sobre quem decide acerca do bem e consequentemente, sobre aquilo que é bom, até pela falência dos factos, a associação que vulgarmente se faz entre provas e verdade, tem tido como resultado a progressiva corporatização do conhecimento : eu não sei o número de telefone de um amigo, eu tenho o número no meu telefone.
De igual modo, a presente lógica cultural favorece a objectividade na construção de sentido. Em detrimento de um espaço imaginário, interior, subjectivo, privilegia uma construção de sentido assente numa experiência com lugar no espaço literal. Nega estruturas internas reconhecíveis individualmente e distintas segundo esta mesma lógica do bem comum, em benefício de proposições linguísticas entendidas como forma pública de criar sentido, na medida em que, e é este o argumento, deste modo o sentido torna-se inequívoco. Dito de uma outra forma, desvaloriza-se o significado em função do significante donde, o sentido adquire características de legenda. Instalação, performance ou estética relacional, estratégias presentemente dominantes e todas elas de carácter manifestamente literal, apesar de contarem com o corpo na construção de sentido (aparentemente) ao dependerem de proposições linguísticas que possam garantir a objectividade pretendida, negam a corporalidade do mesmo ao não o diferenciar, ou seja, partem de uma lógica de não diferenciação dos corpos, como forma de subscrição ao princípio de igualdade democrática, mas simultaneamente, reduzem a noção de participação a uma retórica de presença de um corpo indiferenciado. Um a seguir ao outro num aqui e agora perpétuo

 “ É melhor o trabalho, aquele que tira as relações fora do trabalho e as torna função  do espaço, luz, e o campo de visão do observador “ ii

É uma lógica construída sobre o pressuposto que através do uso da proposição linguistica, o pensamento metafísico, bem como a manutenção de estruturas de poder, podem ser postos de parte. No entanto ao fazer uso da noção de objectividade, acaba por reafirmar a ideia segundo a qual existe uma verdade exterior ao sujeito, assim como, por impor novas estruturas de domínio ao negar a capacidade individual de construção de sentido. Se o valor em causa é o bem público importa aliás perguntar, qual público ? E quem decide sobre o bem ? É uma lógica assente num modelo de sujeito tecnológico, ligado à intensidade da experiência e ao evento como única forma de participação e que depende, na arte contemporânea, necessariamente do pré-formulado. O indivíduo deixa de ser o sujeito que experimenta para passar a ser o objecto da experiência. Note-se por exemplo, como seguindo um princípio de circulação e consequente capitalização do visível, o peso que 2 as inaugurações, feiras e bienais, passaram a ter no mundo económico ligado às artes plásticas ( e que por sua vez é usado como forma de dinamização financeira ), onde a começar pelos agentes, que aliás pouco se distinguem de uma mercadoria em trânsito, a objectificação do sujeito contemporâneo é difícil de ignorar, veja-se o estranho caso, de se achar boa ideia alguém querer levar um tiro. Como forma de resistência, é então fundamental reflectir a representação como não metafísica, de modo a perceber na arte a possibilidade de pensamento ligado à emergente noção de evento e comunidade, interiorizando como possíveis hipóteses, o devir e a diferença. Devemos exigir mais da ideia de arte e aceitar o cosmopolitismo, para quem precisa e não exclusivamente para quem pode.
O brilho, esse, não deve esconder que a luz é toda ela interior.

“A participação no social é, de facto, maioritariamente organizada através de ritos em que segredos abertos  são partilhados. No capitalismo, como Karl Marx notou, o segredo é o valor abstracto do valor, que numa economia de trocas complexas, é essencialmente vazio”iii

É então urgente uma reavaliação ontológica dos processos de representação, sendo para isso necessário, abandonar o princípio de correspondência segundo o qual existe um real constituinte (ideia que está na origem da atribuição de uma lógica replicante à representação). Hoje, temos condições de construir aquilo que precisamos, de reconhecer na ilusão o valor da ilusão, de dar voz ao invisível, de numa palavra, fazer verdade. Ao identificarmos a não operatividade de uma lógica objectiva da verdade, estamos a dar o primeiro passo no sentido do seu valor de uso e de situar na verdade, um princípio inter-subjectivo, atrás das formas, para lá do sol. Contrário ao que é proposto pela modernidade e no seguimento da ciência enquanto discurso ( fundamental refira-se, para o melhoramento das condições materiais em que resultou ), contrário à indexação daquilo que é exterior por meio de isolamento e medição ( metodologia própria do método científico ), julga-se ser hoje fundamental pensar sobre processos de inclusão através do reconhecimento do outro enquanto tal, propondo-se para isso e em alternativa à opticalidade, uma reflexão sobre o toque enquanto metáfora de interiorização da diferença. Lembro-me a propósito de Chaplin e de “Luzes da Cidade “, cuja ideia central -o amor é cego, não tão prosaico quanto possa parecer- é desenvolvida através do tacto como condição de re-conhecimento do outro, ideia aliás, muito próxima da de re-presentação. e que passa no fundo pela possibilidade da ausência ser pensada como presença, ou por outras palavras, por tornar o reconhecimento operativo. Em conclusão, é preciso arranjar uma forma contemporânea de acreditar em aparições, de modo a ter presente o in-visível e desenvolver pelo outro um sentido de responsabilidade actuante.

“O problema com os modelos dominantes na teoria cultural e literária , não se prende com o facto de estes serem demasiado abstractos para articular o concreto do real. O problema é que não são suficientemente abstractos para articular o real incorpóreo do concreto “ iv

À semelhança de períodos anteriores, nos quais em paralelo com alterações no estatuto do objecto e face a profundas mudanças socio-culturais, a escultura oferece hoje, um lugar simultaneamente complexo e amplo ao pensamento crítico, para lá do objecto enquanto signo de si mesmo e para lá do espaço literal. Ao ligar-se a um reconhecimento individual, torna o real maleável e o sujeito contemporâneo directamente responsável pela produção de sentido. Através do desenvolvimento e interiorização de estruturas internas, a escultura devolve o conhecimento ao corpo, oferece resistência à autoridade sobre o sentido do real, e em contraponto com um significado objectivo, exercício factual, introduz o desejo, metonímia do necessário, como condição política. Partindo do indivíduo, a escultura tem a capacidade de destabilizar os limites entre a esfera pública e aquilo que é privado, ao acrescentar à dimensão do visível, próxima do primeiro, a afirmação do tacto, estruturante para o segundo. Perturba a contingência do objecto e posiciona-se entre a substancialidade e a possibilidade, tendo por isso papel preponderante na emergência do evento. Note-se o caso de revoluções políticas onde o gesto destrutivo sobre esculturas, compete inúmeras vezes para a mudança, enquanto acto fundador. Á relação directa que um posicionamento efectivo estabelece com o corpo no espaço literal, a escultura acrescenta neste sentido, a incorporalidade do corpo como presença concreta, promovendo o abandono de uma produção de sentido mediada, pré-determinada e indiferenciada, em benefício de uma reflexão sobre a insubstancialidade do evento, e sobre uma noção de comunidade heterogénea.
Pegando no exemplo anterior e tendo em mente as imagens por certo vivas do ano de 2003, aquando da entrada das tropas norte americanas em Bagdad, não é difícil pensar que talvez nunca tenhamos sido modernosv nem que algum dia se tenha deixado de acreditar que há espíritos a habitar os objectos, e de nas esculturas haver, vozes que importa saber quando calar e outras que importa aprender a ouvir. De quase objecto a parte sujeito, a escultura contemporânea transporta a possibilidade imanente da acção critica.vi

De regresso, o subterrâneo é então esse lugar onde o invisível se torna audível, onde toda a força corre sem medida e se distingue do apresentável, do bonitinho, do giro, onde por necessidade se constroem utopias, sempre interiores, onde se agarra o desejo como quem, em nome próprio, cuida de alguém. Lugar de gesto livre, é reflexo adequado das possibilidade que a escultura contemporânea promove na sua relação com o corpo e com a palavra, e através da qual a acção pode ganhar propriedade. A forma directa com que os processos escultóricos alteram o real, adequa-se à necessidade de acção critica individual e constituem estratégia, de resistência política ao facilitarem ao sujeito contemporâneo, a possibilidade de ser actor em voz própria. Por fim, é importante ter em conta que ao falarmos do global , estamos necessariamente a subscrever a uma lógica antiga segundo a qual, uma escala maior, universal, objectiva e (aparentemente) neutra, é melhor. Num período em que a razão não é actuante enquanto princípio de coesão, é necessário pensar de acordo com uma escala local, subjectiva, diferenciada, e articular a forma actuante com que o conhecimento associado à produção de sentido, ao permitir a re-politização do sujeito, oferece resposta à presente falência institucional. É com alguma ironia e um pouco de auto-comiseração, que penso no facto da maioria dos trabalhos apresentados, terem sido produzidos numa pequena garagem, claro, subterrânea. Fará então algum sentido concordar para poder dizer, que estas são esculturas de garagem. Em relação à cor, apelo ao vosso sentido de responsabilidade.

 

i “ How can you see the darkness ? “ BLANCHOT, Maurice. (1993)The infinite conversation. Mineapolis : University Press
ii “The better new work takes relationships out of the work and makes them a function of space, light, and the Viewer´s field of vision”MORRIS, Robert. (1966) ‘Notes on Sculpture part 2 ‘ HULKS, David. POTTS, Alex. WOOD, Jon. Eds (2007) Modern Sculpture Reader. Leeds : Henry Moore Institute. pp 238
iii “Participation in the social is, indeed, most often organized through rites of sharing open secrets. In capitalism, as Karl Marx observed, the secret is the abstract value of value, which in a complex exchange economy, is essentially empty. “ VERWOERT, Jan. (2009) ‘Secret society. Cracking the codes of conceptual art’Frieze (2009) nº 124.pp 135
iv “The problem with the dominant models in cultural and literary theory is not that they are too abstract to grasp the concreteness of the real. The problem is that they are not abstract enough to grasp the real incorporeality of the concrete”in MASSUMI, Brian. (2002) Parables for the virtual. Movement, Affect, Sensation. London : Duke Universiy Press. pp 5
v Definição sugerida por Bruno Latour, particularmente desenvolvida na publicação “Nunca fomos modernos “. LATOUR, Bruno. (2006) We have never been modern. Harvard : Harvard University Press
vi Leia-se a propósito o seguinte : “O seu ( Henri Lefebvre ) sugestivo comentário acerca do monumento, é precedido de uma discussão similar acerca de outra forma urbana, a rua, por um lado encontra-se sob o domínio da ‘organização neo-liberal de consumo’ e o seu respectivo ‘espectáculo de objectos’, por outro, é um lugar vivo, potêncialmente caótico, que origina um teatro espontâneo e acontecimentos revolucionários.” HULKS, David. POTTS, Alex. WOOD, Jon. Eds (2007) Modern Sculpture
Reader. Leeds : Henry Moore Institute. pp 297 

Publicado a 16 de Setembro de 2009

21
Mai
a
20
Jun
ana-leonor

BCVII, 2008, acrílico sobre tela, 50x60 cm

Bacteria Caerulea: a ficção da pintura quando a cor do feminino é azul

Amar uma imagem é sempre ilustrar um amor: amar uma imagem é encontrar sem o saber uma metáfora nova para um amor antigo.

Gaston Bachelard, A Água e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria.

Em The War of the Worlds (1898), H. G. Wells descreve a invasão da Terra por máquinas de guerra que, depois de os homens se revelarem incapazes de as combater, acabam por ser destruídas por uma bactéria existente na atmosfera, à qual não são imunes. Quarenta anos mais tarde, e recorrendo ao mesmo argumento, Orson Wells utiliza uma estação de rádio para produzir uma realidade que provocou o pânico nos Estados Unidos. Invasão, contaminação, domínio, colonização são as variantes do único tema que a ficção científica soube inventar, sempre alimentada por um imaginário que faz depender a existência de outros mundos da inevitabilidade de seres em oposição, ou seja, de seres-objecto (ob-jectum), num longo desfile de mutantes, de alienígenas, de ciborgues, de máquinas, de vírus, de bactérias assassinas ou redentoras, tão ambivalentes como as gotas de sangue que se desprenderam da cabeça da Medusa, todos eles desejavelmente submissos, precários, sexualmente inexistentes, vencidos ou a vencer e cuja revolta, a existir, se conclui na auto-destruição.
Esta ficção, que fixa nos códigos da realidade a garantia da sua credibilidade, assenta na assunção de um duplo precário, um reflexo no espelho que se autonomiza do ser que o produz, como outrora os objectos se revoltaram contra os donos, tal como hoje, libertos da referência humana, se miniaturizam, reduzidos a presenças microscópicas que, no interior do corpo, chips, vírus ou bactérias, optimizam a sua performatividade e as dimensões da consciência que ajudam a expandir. Mesmo que, Lilliput de novo no mundo às avessas de Alice, o humano seja o intruso ou o duplo que, como Angelina Jolie, replica a exemplaridade virtual dos gestos de Lara Croft.
É este o argumento que, desde 1996, Ana Leonor está disposta a subverter no projecto BBB (Burned by Blue) a partir da revisão das relações entre dois seres: uma mulher e uma cozinha que encontram o seu alter-ego num corpo simbiótico. Ou, dito de outro modo, uma mulher que desde Platão é um lugar (habitáculo) e um lugar que desde sempre lhe foi destinado (a cozinha), que se instaura como seu duplo, remetendo, em circuito fechado, para a primeira função maternal, tão bem ilustrada nas gravuras que, nos séculos XVI e XVII, representam o mundo sob a forma de uma mulher que amamenta. Mulher ou cozinha, ambas acolhem e protegem, ambas são criaturas e não criadoras como atestam, quer a figura de Cinderela (ou dever-se-ia dizer Gata Borralheira?) que num canto da chaminé aguarda o seu príncipe encantado, quer toda a História da Arte, expressa no mito de Pigmalião, a definir as normas que, daí em diante, informarão a relação do pintor com a modelo. Porque a simbiose não salva a mulher da sua condição de modelo. Apenas transfere para um corpo outro esse princípio predador de uma admiração masculina que faz do corpo do outro o objecto modelo, ou seja, o objecto do desejo de um olhar que segrega. E é dessa curiosidade que é preciso salvar as cozinhas ou as mulheres que ficam azuis, numa segunda subversão que rejeita o rosa das aparências e elege o azul como cor emblemática da aparição de um feminino contaminado pelas bactérias produzidas por cozinhas (ou mulheres) abandonadas e pintadas de um determinado azul, uma vez que apenas esse azul permite a comunicabilidade imprescindível ao aparecimento do corpo simbiótico.
Embora designada caerulea, talvez por nascer do azul, a bactéria responsável pelo desencadear da simbiose é cinzenta («entre o cinzento quente e o azulado»), reservando nessa neutralidade a possibilidade de ser outra coisa, reduzida que está a um esqueleto que adia a decisão sobre a anatomia do corpo de que se constituirá a estrutura, tal como mantém em aberto duas possibilidades distintas de se reproduzir. O processo simbiótico começa por se manifestar como uma doença: com dúvidas e desorientações, com sintomas de refracção e perdas momentâneas dos sentidos, com cegueiras temporárias e com desdobramentos em que o ser se observa a ser coisa observada. Mas tudo termina quando este novo corpo decide que nenhuma das suas partes prevalecerá sobre a outra, o que implicaria o desaparecimento das duas.

Instalações, performances, vídeos, fotografias, desenhos, diagramas, conferências, têm sido os meios utilizados por Ana Leonor para divulgar o processo e os resultados do seu projecto. Pela primeira vez, cabe ao espelho demonstrar e à pintura evocar o que os meios até agora utilizados mostraram, no compromisso possível entre os enunciados de Jean Duvignaud e Susan Sontag.
O espelho é indissociável da História da Pintura: juiz da obra acabada, como queria Alberti, ou símbolo da visão exacta, como defendia Leonardo, o espelho é, com Narciso debruçado sobre o azul abissal do lago, a figura do mito inaugural da pintura. Mas é também Eco, a ninfa apaixonada que, depois de morta, foi condenada a repetir as últimas sílabas de todas as palavras, o que implicou para ela a impossibilidade de aceder à distância instaurada pela palavra. E é a bandeja que emoldurou, como uma imagem, a cabeça de S. João Baptista ou, no seu simétrico, o gelo do lago a emoldurar ainda a cabeça de Salomé prestes a desaparecer no abismo das águas. E está presente nas várias sugestões de contentores metálicos em que a Bacteria Caerulea é incapaz de se reproduzir. Porque no reflexo do espelho reside a sua própria incapacidade de fixar uma imagem e de definir um limite a partir do qual já nada pode continuar a viver. Por isso, o reflexo é uma imagem da morte, espelho ou pintura, a remeter para o duplo de Dorian Gray que enquanto retrato (enquanto imagem) revela a inevitabilidade da dissolução do corpo que lhe serviu de modelo e que, apenas depois da morte do modelo, pode voltar à sua condição de retrato.
Falemos então de pintura. «A união do desenho e da cor é necessária para produzir pintura tal como a união do homem e da mulher para gerar a humanidade; mas é necessário que o desenho conserve preponderância sobre a cor. Se assim não acontecer, a pintura encaminhar-se-á para a sua ruína; perder-se-á como a humanidade foi perdida por Eva». É assim que, em 1867, na sua Grammaire des Arts du dessin, Charles Blanc reflecte sobre a presença da cor na pintura. E se essa presença se reveste das características contraditórias atribuídas à mulher – tanto é qualquer coisa de acessório como a responsável pela perda da humanidade – nestas pinturas de Ana Leonor, a mulher é decididamente a própria pintura. Pela existência de uma pele que, como uma maquilhagem, ganha uma coloração azul, para a qual a única profilaxia aconselhada é a cor laranja que, de vez em quando, faz uma tímida aparição; pela decisão de transformar em retratos, as várias naturezas mortas (still life?) que prescindiram da morte dos seus modelos; e, fundamentalmente, porque tudo se resume à possibilidade de, mais importante do que ser vista, esta pintura dar a ver, ser teatro na mais radical etimologia do conceito, um teatro onde afinal a última etapa coincide com a serena passagem do azul ao preto, naquilo que constituirá a última subversão deste projecto: ser mulher e preta e poder dizer sem que ninguém ponha em causa a importância dessa revelação que «Há dias em que [a cozinha] parece uma menina pequena a fazer maluquices». Claro que o mesmo se pode dizer da pintura.

Maria João Gamito

Publicado a 4 de Maio de 2009

26
Mar
a
2
Mai
o concílio
FRANCISCO JANES

imagem_projecto_nova

Sobre estar presente. Algumas lacónicas e desordenadas palavras sobre O Concílio de Francisco Janes

O Concílio, instalação composta por três projecções de imagem e por diversos excertos sonoros (água, vento, fogo, o canto de um pássaro), é o projecto mais complexo e, não por acaso, mais extenso, no que ao tempo de preparação concerne, que Francisco Janes realizou até à data. Trata-se de um projecto exemplar do processo de trabalho do autor: está indelével e estruturalmente marcado pela ideia de experiência e, mais do que isso, pela vontade de materializar, de traduzir, de propiciar essa experiência ao espectador; desconstrói a ideia de linguagem e de disciplina em favor da de dispositivo; parte, como outros projectos da sua autoria, de um lugar específico, algures na Serra da Estrela, nascendo de longas caminhadas, de estadas solitárias, de um monólogo interior, num lugar cuja reverberação ecoa um tempo geológico e original. Nesse sentido, as suas peças têm uma qualidade de ambiente, são dispositivos que estão para além de uma ideia de instalação para se afirmarem como abertura para outro espaço, a um tempo, mais amplo, distante e preciso. O espaço do encontro entre fenómeno e consciência.
No curto espaço em que cabe esta apresentação, gostaria de isolar um facto suficientemente raro no nosso contexto para ser realçado, a vizinhança ou contiguidade, um encontro, entre trabalhos de autores e épocas diversas. Refiro-me ao filme “A manta vermelha” que dialoga, consciente ou não desse diálogo, como nenhuma outra peça o tinha feito até hoje na arte portuguesa, com esses “ovni” que são as experiências fílmicas de Ângelo de Sousa nos anos 70. Como naqueles, a câmara torna-se num dispositivo háptico que se abre aos sortilégios da realidade envolvente. Como um olho, somente menos avisado e menos perfeito, molda-se ao fenómeno conferindo-lhe qualidades próprias da percepção da imagem (cor, luz, difusão, temperatura), produzindo, como nos filmes de Ângelo, efeitos visuais de intenso fulgor pictórico.
Falar de encontro não seria mais apropriado que falar de cinema, no caso vertente. Antes de mais, encontro consigo próprio, que é aquilo que o trabalho do autor, fortemente ancorado numa atenção e num escrutínio constantes ao fluxo do pensamento e das sensações, essencialmente mapeia e regista. Espaço (e tempo) do cinema, no sentido de configurar uma experiência propriamente física e comunitária. Tudo o mais, que é o essencial, joga-se num constante movimento dialéctico entre ver e ouvir, pensar e estar, projectar e interiorizar, entre frio e calor, a névoa e a pedra, o fogo e a água, a imagem e a palavra.

Nuno Faria

Publicado a 4 de Maio de 2009

26
Mar
a
21
Mai

inferno

“Apanhei o comboio que ligava Munchenhausen a Bocksbergforten (…) Depois do almoço Chiara permitiu-se acompanhar-me à minha cabine, nenhum de nós dois era dado a sestas e o seu irmão não viu inconveniente em estarmos os dois sós. Mal se sentou segredou-me sorridente que tinha roubado umas das colheres de prata da sobremesa. Mostrou-ma escondida no seu bolso. Fingi não achar piada mas nem ela nem eu acreditámos na minha tentativa de sermão (…) Passávamos entretanto pela montanha de Viberg (…) A paisagem que discorria pela janela era apenas marcada pela flutuação das linhas que demarcavam o espaço e permitiam distinguir o céu da terra, uma montanha da outra. Nada além de um conhecimento prévio poderia fazer supor que o fundo branco de toda aquela paisagem não seria um plano homogéneo. Chiara tinha acabado por adormecer lentamente encostada ao meu ombro. Não me queria mexer. Não queria fazer com que assim terminasse aquele contacto físico, ou fazer com que fossemos ambos confrontados com o inusitado da situação. Tal acabou por não ser uma questão já que a entrada do Sr. Pitt fez com que a acordasse sem pensar na sua posição. (…) Giovanni jogou a sua carta e pousou o olhar no meu ombro, reparei que algo do rouge de Chiara tinha manchado o meu fato.”
Hans-Joakim Skollenberg, Samarcanda, Assirio & Alvim

“John Knowles entrou na sala e os restantes polícias afastaram-se cama king size onde o corpo arqueado da jovem franzina jazia no cimo de diversas camadas de roupa ensanguentada. Longe de o impressionar o cenário não era dos mais dantescos. Já tinha visto manchas maiores em locais menos prováveis (…)
Como de costume, ficou no laboratório muito depois dos outros se terem ido embora (…) [John] espalhou todos os lençóis e cobertores no chão.
Juntos ocupavam a totalidade da sala. Verificou a fronteira das manchas e procurou identificar as pregas que permitiriam juntar o puzzle do jogo de cama e recriar a posição original do cadáver. Quando terminou verificou que tinha sido o sangue pressionado pelo corpo a imprimir o contorno deste nas telas (…)
Apagou as luzes e subiu para a cadeira. Os infravermelhos revelavam não só o plasma já entranhado e coagulado no tecido e a gordura humana de um número desconhecido de pessoas mas também uma profusão de salpicos demasiado distribuída e numerosa para ter origem em qualquer secreção humana.”
Steve Botnick, C.S.I. Las Vegas: Os Melhores Casos, Sic Livros

“(…) Como não conseguia dormir acabei por ir bater à porta de casa do meu pai. Recebeu-me surpreso e sentámo-nos no sofá. Falou-me de alguns livros (…) e sugeriu-me ir ao jardim zoológico.
Custou-me a conduzir já que a sonolência do ópio era potenciada pelo ronronar do carro. (…) O tigre roçava o vidro e estava a 15 centímetros da minha cara. Tentei estabelecer algum tipo de contacto visual mas os movimentos do tigre que o faziam ali passar eram constantes e recorrentes, pouco motivados pela nossa presença. O pai afastou-se para ver alguns dos quadrúpedes da sua infância e fiquei ali a olhar para as manchas dos três animais deitados ao sol.
Das informações frequentemente expostas nestes sítios ficámos a saber sempre as mesmas duas ou três parvoíces: os cornos dos rinocerontes são feitos de pêlos, os macacos são quase iguais a nós e os tigres nunca têm as manchas iguais. Nessa especificidade felina seria eventualmente possível um Ching Tigrês se conseguíssemos pôr uns 70 e tal tigres no mesmo espaço. Um qualquer sultão terá provavelmente feito algo assim.
Prometi-me a mim mesmo organizar tal infra-estrutura caso o meu futuro financeiro o permitisse. Teria uma sala gigante com setenta tigres, um chinês teria previamente atribuído um trigrama a cada um. Uma ou duas vezes por dia bradaria as minha inquietudes aos céus e lançaria algo assim impactante como um pavão vivo aos tigres e os primeiros a devorá-lo revelariam as maquinâncias do meu destino.”
Flavio Chini, O Sermão de Sta Apolónia aos Leões, Ed. Antipáticas

“O pequeno livro que Ramón tinha deixado esquecido dentro do saco da ginástica era sobre Numerologia. Laura ficou intrigada. Normalmente tinha pouco tempo para misticismos e coisas do género, não condizia com o seu perfil de mulher a braços com a contemporaneidade recorrer a estes métodos de garota incerta. Mas a curiosidade foi mais forte e uns minutos depois Laura tinha uma folha cheia de rabiscos na sua mesa da cozinha. O seu número de nascimento era o dois: A dualidade e a feminilidade, se o um é o deus bom o dois é o combate entre o bem e o mal, a vagina que se adapta à recepção do pénis. Estava certo, afinal não tinha ela bisbilhotado as coisas do seu novo amante? Investigou o número de Ramón e descobriu o 7, considerado um dos números mais sagrados e mágicos da tradição Judaico-Cristã, não tinha deus descansado no sétimo dia? (…) Ramon despiu o casaco que usava para andar de mota e pegou nela ao colo. “Tu és um sete, eu sou um dois” disse-lhe Laura, atirou-a para cima da cama reparando no seu livro aberto no balcão corrido da cozinha. ”
Federica Montseny, Há uma luz que nunca se apaga, Pergaminho

Luhuna Carvalho

Publicado a 26 de Janeiro de 2009

21
Nov
a
31
Dez
BOYS NEED YOGA TOO
TATIANA MACEDO
Saw the stars crashing, 2008, Inkjet prints ,Ed. 1/3 +PA, 80x120 cm

S/Título, 2008, Inkjet prints ,Ed. 1/3 +PA, 80x120 cm

Xangai Girls Do It Better

São apenas breves segundos, numa parte tipo “boy-meets-girl”, do vídeo de 1986, “Papa Don’t Preach”. São breves mas suficientemente significativos. Vemos Madonna encostada às grades de um jardim com as amigas, a trocar olhares com o seu interesse amoroso no vídeo, enquanto vestia uma t-shirt que declarava “Italians Do It Better”. Assumindo e proclamando, entre outras coisas, a sua ascendência italiana em tom de provocação jovial e bem disposta. Tornou-se massiva a utilização da t-shirt slogan, ou “statement”. Todas as grandes marcas de roupa, ou grandes cadeias de lojas têm hoje as suas, copiando afincadamente as que se tornaram de culto, noutras décadas. Já foi atitude punk, hoje é statement diário H&M.

As imagens que vemos nesta exposição são uma parte do trabalho resultante de uma viagem de Tatiana Macedo à China, no Verão de 2008. Quando decidiu passar dois meses em Xangai, não foi cheia de ideias pré-definidas sobre o que iria desenvolver, investigar. Decidiu deixar coisas em aberto, para tentar perceber o que a cidade lhe proporcionava. Uma coisa é sempre certa. A fotografia é o seu suporte primordial. Em todas as suas múltiplas abordagens, seja mais documental, mais propositadamente “promocional”, mais conceptual. O importante em cada projecto seu é a maneira como se relaciona com o sujeito que escolhe, como se tentasse relatar e reflectir o seu contexto social, sem nunca o transformar num número ou numa percentagem. Para nos obrigar a pensar exaustivamente no outro, naquele que não somos nós. Naquilo que nos aproxima, ou no que supostamente nos afasta.

Em Xangai, ao fotografar quem passava na rua apercebeu-se de uma diferença marcante. As raparigas naquela cidade não usavam calças de ganga, não usavam roupa “casual”. Estavam sempre ultra femininas, bem vestidas, arranjadas. Os rapazes a seu lado eram quase invisíveis, não se destacavam. Foi irresistível, passou dois meses a fotografar as mulheres no metro, na rua, a comer, a divertirem-se. Em cada imagem relaciona-se sempre com uma mulher, de cada vez, por um breve instante. Temos a sensação que sem o conhecimento destas. Sentimos que quase sorrateiramente, a artista investiga as jovens raparigas chinesas. Investiga também, obviamente, o seu papel na China de hoje.

Durante o processo viu uma rapariga, por breves segundos, com uma t-shirt rosa-choque com letras a preto em jeito de statement – “Boys Need Yoga Too”. Não conseguiu retirar a tempo a câmara fotográfica e não registou esse momento, mas essa pequena declaração acabou por motivar uma série de reflexões agora apresentadas.

Susana Pomba

Publicado a 20 de Novembro de 2008

25
Set
a
8
Nov
S/Título, 2008, guache e grafite s/papel, 129x115 cm

S/Título, 2008, guache e grafite s/papel, 129x115 cm

A disciplina do desejo

Pensar o desenho, quando não se trata de comentar o que se revela nas próprias linhas ou na estrutura de um conceito, é uma forma de pensar a disciplina necessária para lidar com o desejo. Nuns casos é evidente a intenção consciente de explorar mais a firmeza da forma, noutros a de dar o máximo de liberdade à expressão do corpo que se grafa; porém, é no tipo de tensão, entre aquele que faz e o que resulta feito, que se manifesta a distância conseguida relativamente à vertigem da potência. É uma operação que faz parte do drama intrínseco ao artista — presumindo a adequada apropriação das gramáticas do seu métier —, mas é também o cerne do trabalho de si; regular a intensidade, quantas vezes abafar, dessa pulsão ou potência.

De Bartleby, personagem de H. Melville, diz Agamben, que vem para “salvar o que não aconteceu” — ou libertá-lo, como quase sugere, em anagrama, o nome escolhido para o escriba. De facto, extrapolando um pouco da sua Poética, é assim que Aristóteles aborda o seu conceito de arte; segundo este, ela ocupar-se-ia do que poderia ter sido. Potência irrealizada, imprevista e imprevisível antes de se dar, é, também, o desejo que emerge, já domado, no fazer do criador.

Da transformação, necessariamente individual, que a formação técnica e histórica implica em cada um (mediada pela constante prática do exercício), veículo para a libertação ordenada dessa energia, resulta a modalidade disciplinar posterior. No entanto, esta desenvolve-se, não porque a aquisição das formas disciplinadoras, ainda que apreendidas na sua inteira significação, acrescentem mais ou outra energia a uma prévia — naturalmente, a que garante a existência — mas porque, exactamente, já havia outra que elas tornam evidente; a que permite tanto o preferirei não de Bartleby como tudo aquilo que poderia ter sido. É o que pode estar/dar a mais, ainda que seja uma recusa ou uma ausência, que distingue o excepcional.

Se na obra anterior da C.R. já se sente a dinâmica do desejo (e o des-tecer das marcas que suporta — por exemplo, as do feminino, na litania do lamento pela palavra que se prolonga), a presente ocasião serve, de modo privilegiado, para que se possa apreciar o rasto, laborioso e paciente, da libertação dessa potência. Quase à vista na superfície do papel, figuradamente, sente-se o esforço disciplinado da vontade, exercido contra (antes) e sobre (após) esse excesso que transborda, ainda se domado, em aveludados blocos opacos — desejo já malhado na bigorna do rigor.

Mesmo se há ‘desejo de disciplina’ ele será sempre segundo, como a própria disciplina, em relação à potência excepcional; ambos são manifestação do mesmo, i.e., aspectos ou estados dessa energia, contudo, em diferentes níveis. É no saber dessa diferença, o que implica o respeito pelos domínios que lhes são específicos, que se elabora o trabalho do desejo — de incorporação ou de inscrição. O que sobra como obra, enquanto marca ou traço, é uma sombra da sua realização (ou resolução) na própria vida como trabalho de si.

Manuel Rodrigues

Publicado a 24 de Setembro de 2008

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Hairy Monster reinventing itself before a Door of Transition, 2008, técnica mista, dimensões variáveis

Hairy Monster reinventing itself before a Door of Transition, 2008, técnica mista, dimensões variáveis

 IN THE FUTURE WE TRUST – “BELIEVE ME OR NOT”

Operator – pessoa que põe algo a funcionar.
Num quadro em que as funções do artista são cada vez mais alagadas (“artista-etnógrafo”, “artista-curador”) a noção de operator reveste-se de grande pertinência. Operar para alterar um determinado programa e para potenciar (in)determinados outputs.
Tiago Borges (TB) recorre a um número considerável de materiais para dar corpo às hipóteses artísticas que equaciona , e utiliza uma forma de ironia que lhe é característica. Frequentemente, os objectos são deslocados dos seus contextos originais e são agrupados de determinada forma, produzindo um efeito de “estranhamento” (a lógica do ready-made). A metodologia que adopta é activa e económica: todas as ideias são utilizadas e nada é posto de parte, porque só com um suplemento de criatividade se poderá devolver a dimensão poética e estética ao homem comum.
TB trabalha como um bricoleur (diria “brincoleur”) que reelabora incessantemente os materiais que dispõe, procurando novas possibilidades de associação dos mesmos, transformando-os e transformando-se, inventando novas formas. Páginas web que alojam imagens gráficas, esquemas, diagramas, máquinas produtoras de efeitos sonoros, aglomeração aparentemente aleatória de objectos, néons amputados com brinquedos, stencil e graffiti, projectos editoriais, cinematográficos e decorativos para potenciais clientes… e na base o desenho que exercita o pensamento rápido e regista as psicogeografias do quotidiano.

Index – indicador estatístico de alterações; primeira página de um website.
Se o conjunto das propostas de TB tomasse corpo numa forma gráfica, seria um zig-zag, ou uma sismografia, registando diferentes intensidades, e com algum tipo de excesso. Por outro lado, certas práticas podem ser entendidas como sintomáticas, como por exemplo o facto do uso de materiais perecíveis e de baixos custos serem respostas a determinado mercantilismo da arte, ou à museificação. As relações que os trabalhos de TB estabelecem com aspectos gerais, relativos à sociedade contemporânea e à sua transacção de fluxos culturais, permitem-nos pensar noutros aspectos. O exemplo da subida galopante dos preços das obras de Jean-Michel Basquiat nos últimos anos de vida, doente de HIV, foi sintomático de uma “fome de África” que continua, no contexto da arte. Não importa de que África falamos, nem onde se localiza efectivamente. Se no continente, se na diáspora, se no imaginário. O que é certo é que, embora à margem das narrativas oficiais, África tem continuado a veicular para o Ocidente a maior parte das energias vitais que alimentam a arte contemporânea.

Ars Combinatoria – arte combinatória de signos
As imagens que “assombram” o trabalho de TB são heteróclitas e têm poucas hipóteses de territorialização. Para isto terão contribuído as multi-línguas, os multi-coloramas, os cosmopolitas, russos, cubanos, checos, sul-africanos, MPLA, UNITA, os comunistas, os antroposofistas, os pretos, brancos, mulatos, amarelos, vermelhos, azuis, transparentes, a ciência, a poesia, a Azóia, o Mussulo, Angola, África, Europa, o Brasil, Cuba, Egipto, Manchester, Londres, e muitos outros lugares que nos refere a biografia.
Podemos destacar três aspectos desta arte combinatória de signos: a itinerância, a narratividade, a recuperação.
Por um lado, estes trabalhos transitam entre a alta e a baixa cultura, sem preocupação aparente de categorização, tornando-se um elogio a essa irresponsabilidade – o resultado é uma espécie de wunderkammer contemporânea.
Em segundo lugar, as histórias que cada trabalho conta, indissociáveis das várias línguas que compõem o seu “imagolecto”.
Finalmente, em conjunto com outros artistas, o trabalho de Tiago Borges contribui para inscrever a produção artística de Angola no circuito da arte contemporânea internacional. Ao mesmo tempo que se promove uma “recuperação iconográfica” (Paulo Cunha e Silva) resultante do contexto pós-colonial, articula-se essa iconografia com os elementos de uma cultura artística internacional.

Marta Mestre

Publicado a 13 de Junho de 2008

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S/Título
NÁDIA DUVALL
Toques, 2008, técnica mista sobre tela, 200x187 cm

Toques, 2008, técnica mista sobre tela, 200x187 cm

 Gravidade e graça

Even at this very moment, action, work, love, thought, the search for truth and beauty are creating certain realities which transcend the transitory nature of the individual. And the fact that this assertion has become trivial, that it has been put to use too often – sometimes to worst kind of ends – does not mean that it has stopped being true.

 Henri Lefèbvre, Critique of Everyday Life [1947]
Para Lefèbvre , cabe aos seres modernos de cada tempo procurar dar o passo seguinte, aspirar ao não realizado, ao porvir. São seres insatisfeitos com a sua condição contemporânea [que porém não rejeitam], mas que de forma mais ou menos consciente derramam sobre a experiência quotidiana dessa condição, contingente, um desejo de superação, crítica e radical. Na Arte dita Pública, esse é um traço fundamental que legitima o acontecimento como categoria filosófica, nomeadamente por via de acções de autoria partilhada e processos sociais colaborativos. Estéticas relacionais. Numa arte que permanece no ateliê ou na galeria, no circuito privado, como acontece com Nádia Duvall, tal superação corresponde a um processo de evolução individual, ao ritmo dos avanços e dos recuos de um conhecimento progressivo dos próprios parâmetros e limites da acção, onde a ânsia pela liberdade e o significado se expressa numa relação tendencialmente emancipatória face à matéria plástica. A busca de uma graça [partilhável].

Perante esta primeira exposição individual de Nádia Duvall, temos o privilégio de ver desenrolar-se à nossa frente um destino, duro e inevitável como todos os destinos. A Nádia coube acontecer-lhe empreender um projecto artístico de refundação do prazer da plasticidade [Plastik, na língua de Joseph Beuys]. Digo ‘acontecer-lhe’ porque, como adivinhará quem com ela priva, trata-se de um conjunto de trabalhos que, sendo determinados por uma mente e uma mão, um corpo, em muitos momentos de forma deliberada e precisa – Nádia é praticante avançada de artes marciais –, não deixam de pressupor, ao mesmo tempo e em tensão criativa, uma dimensão de pulsão, automatismo, de inconsciência. Isso torna-los-á uma forma dissimulada de misticismo. Canais de uma subjectividade transpessoal.
Na ESAD.CR, onde a artista acaba de concluir os seus estudos, o seu trabalho é há muito um caso especial de convicção [obsessão?], intemperança [autodestrutividade?], beleza [estética?]. As suas telas de grande formato pressupõem um processo de literal habitação da matéria plástica pelo corpo da artista, implicando o envolvimento de todo esse corpo, como máquina, no processo de apropriação da praxis pictórica. Trata-se de assegurar ao acto criativo uma processualidade em que a concentração mental e o movimento controlado se aliam ao idealismo de juventude para instaurar uma experiência total violenta, que abdica de comentários e contextualizações. Uma evidência que traduz uma energia com elevado grau de pureza, sobranceria.

Na ESAD.CR já tivémos, professores e colegas, o contacto quotidiano com esta visualidade orgânica, configurações em que a plasticidade do gesto artístico é resultado de um ritual solitário – de espectacularidade mais pressentida que exposta [apesar das várias performances que a artista regularmente propõe]. Mais que a partilha da sua técnica [cujos aspectos experimentais, determinantes, relativos às reacções químicas, esconde deliberadamente], é uma coisa que está ali, que se impõe, para ser fruida esteticamente por meio de um dispositivo específico, o do género pictórico.

Porque não se trata da proposição de um ‘mundo próprio’ com significados deliberados, o gesto artístico é em certa medida o de uma desdiferenciação perante a ideia de autoria [e de autonomia, enquanto expressão de interioridade], e por isso estamos perante um processo para o qual o virtuosismo não está em qualquer tipo de técnica académica, mas na convicção, na necessidade e na entrega de um corpo a um projecto de arte. À investigação subjacente a esse projecto. Mas é inerente ao trabalho, o qual se mantêm a grande distância da busca da empatia, também, e talvez por isso mesmo, um noção política de publicidade [no sentido de Arendt], a afirmação em crescendo de uma identidade individual através da apropriação do conceito de arte – algures entre a insconsciente [e despolitizada] ‘mão’ de Pollock e a cerebral consistência intelectual de um Klein [ambos reconhecidos por Nádia como referências].

Perante as pinturas de Nádia, que habitam um território tão vago quanto objectivo, cabe ao espectador procurar e encontrar o seu lugar. Esse lugar pode ancorar-se em diferentes paradigmas da recepção:
– para os advogados da processualidade, está lá o gesto, a performatividade, um dispositivo de emancipação individual, um sentido de missão;
– para os adeptos do Belo como objectificação do acto criativo, não é fácil ficar indiferente a uma gramática de acasos que tanto evoca o surrealismo como o dripping;
– para os amantes do minimalismo, bastaria surpreender na aparente aleatoriedade das configurações fixadas uma natureza em processo, a experiência do total [acentuada pela concisão cromática];
– para os defensores da transversalidade, é possível reconhecer no discurso desta criadora abertura para, no futuro próximo, alargar o âmbito do seu trabalho [Duvall prevê para breve recorrer à colaboração de cientistas na área da Física e da Química]…

Em qualquer uma destas hipotéticas posições-tipo perante a obra de Nádia Duvall, releve-se porém um valor comum, o da Verdade. Por via da problematização da relação entre corpo e obra, mente e forma, do carácter obstinado da busca e do rigor documental que a artista faz questão de incluir no seu programa, tal verdade advém de um sentido do valor da liberdade. Um valor cultural que, na sua aparente autoconfinação – aos materiais e habitus da Pintura – se torna por isso mesmo mais vivida e apropriada. A Verdade como Poiesis, uma livre poética do fazer, em imponderabilidade, e que se apresenta como ambição e entrega, ostentando uma dimensão terapêutica [ainda Beuys], mas por enquanto ainda não se encontra mediada pela serenidade estóica. Esta é uma arte que se esconde e revela ao mesmo tempo, convidando o público a presenciá-la como peculiar expressão do efémero. Um acontecimento, privado, mas por todos.

Mário Caeiro, docente na ESAD.CR

Publicado a 7 de Maio de 2008

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Rif, 2007
MARTA SICURELLA
S/Título, 2007,c-print,20x20 cm

S/Título, 2007, C-print, 20x20 cm

Quando para lá de um muro, o que nos absorve é apenas um azul intenso de céu e esse ecrã lumínico se sobrepõe a tudo pela sua imensidão vazia mas avassaladora, é quase certo que estamos no sul. Quando as paredes são de cal, os pátios se sucedem aos terraços e a tez é escura, asseguramo-nos de que estamos no sul.
RIF é o nome duma zona montanhosa ao norte de Marrocos, por onde a artista viajou em Agosto de 2007. Sabemos estar diante de impressões de viagem, que não vemos como documentos porque o olhar que as isola é formalmente poético e desinteressado: deslumbrado com as cores, com as esquinas, com a passagem por algumas pessoas e com as surpresas triviais de certos caminhos.
É o sob o signo da deambulação e da entrega ao imprevisto e à possibilidade de errar (no duplo sentido da palavra), que surgem estas imagens. Para a artista, que não fotografava há algum tempo e cujo trabalho fora sempre mais calculado e quase sempre encenado ou preparado, a decisão de fotografar sem racionalização prévia equivaleu a uma experiência de libertação e de maior expressão da intimidade: aquela que os olhos estabelecem com outros sentidos perante os territórios novos que, de repente, os interpelam em viagem.
Talvez a viagem seja, por isso, a condição privilegiada por tão grande número de fotógrafos – o desafio permanente de decifração e fixação que uma mobilidade e mudança voluntárias mas também permanentes lhes colocam.
Mas esta entrega espontânea à surpresa dos lugares não varreu das imagens elementos que existiram sempre no universo criativo da artista: a quietude de um lugar estranhamente iluminado; o trabalho subterrâneo e secreto da sombra e da obscuridade ou de um qualquer privilégio restrito de luz; o intervalo entre os gestos que um grupo suspende na expectativa das reacções por vir; os fios que se enrolam e se estendem no sítio infinito de uma metáfora narrativa; a singularidade de um contorno desenhado por um excerto natural, arquitectónico ou objectual.
A esse olhar, que afinal só se liberta para voltar a aprisionar-se em si próprio e no que lhe é intrínseco, Marta Sicurella acrescentou, no entanto, decisões e possibilidades novas: utilizou uma antiga Rolleiflex de médio formato, sem fotómetro e com entradas de luz não controláveis, que assumiu; recorreu a rolos fora de prazo arriscando infidelidade e estranheza cromáticas; quis que as imagens existissem sem nenhuma especial mestria técnica; mas quis sobretudo sentir-se mais próxima de si mesma ao aventurar-se nelas dessa forma errática e descomprometida.
Mar, montanha, mesquita, mercado, casa, jardim, aldeia, deserto, muralha, ermo, baía, muro, estrada… O percurso mapeado recolheu neles o ecrã quase imponderável de quem passou por eles sem peso na bagagem. O que ficou entre cada um foi fecundo afastamento, engano, aventura.

Leonor Nazaré

Publicado a 27 de Março de 2008

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