Chevy - GMC, 2007, tinta da china e acrílico sobre papel, 142x173 cm
TODOS OS DIAS A MESMA COISA – CARRO – TRABALHO – COMER – TRABALHO- CARRO – SOFÁ – TV – DORMIR – CARRO – TRABALHO – ATÉ QUANDO É QUE VAIS AGUENTAR? – UM EM CADA DEZ ENLOUQUECE – UM EM CADA CINCO REBENTA
São muitas as histórias por detrás de cada uma destas histórias.
Tal como o título da exposição, em que a cada palavra correspondem dezenas de significados, acções e coordenadas que depois se conjugam entre si de modo dinâmico e sequencial. Tal como a história por detrás da narração desenvolvida pelo título, que pertence a uma Londres dos anos 1970, em que King Mob, um grupo artístico radical, inseriu esta mesma frase (Same thing day after day – tube – work – dinner – work – tube – armchair – TV – sleep – tube – work – how much more can you take? – one in ten go mad – one in five cracks up) na estação de metro Ladbroke Grove. Outra das acções famosas deste grupo foi a entrada de alguns dos seus membros, vestidos de Pai Natal, no Armazém Selfridges de Londres, onde distribuíram os brinquedos da loja pelas crianças que aí estavam. O espírito punk de contestação da vivência burguesa e do welfare state desperta o quotidiano da sua normalidade ao nele se inserir de modo simultaneamente critico e divertido.
Pois as histórias que por aqui passam, são muitas mais e as suas coordenadas, díspares e aparentemente divergentes, unem estes seis desenhos que João Fonte Santa (Évora, 1965) apresenta na VPF Cream Arte.
Por um lado, a lógica por detrás das imagens produzidas parece obedecer a um esquema de pensamento Deleuziano, ao considerar as noções tradicionais de espaço e de tempo como categorias uniformizadores impostas pelo sujeito e, deste modo, como formas de identidade.
Por outro, existe uma curiosa investigação das alterações espácio-temporais geradas pela presença humana e pelos seus efeitos simultaneamente devastantes e apaziguadores.
Falando com o artista, avistei outra história e outro tempo: Tancredi, personagem genialmente interpretado por Alain Delon no Gattopardo de Visconti, efusivo com a hipótese de uma revolução e afirma: ‘É necessário que tudo mude para que tudo fique na mesma!’
É exactamente este paradoxo, de retoma da normalidade em situações de catástrofe, que Fonte Santa explora nestes desenhos, realizados a tinta da china sobre papel. Os seus fundos, de um prateado saturado e onde parece não haver espaço para respirar, à semelhança das imagens dos Beatus, (códices medievais de comentário ao Apocalipse iluminados com desenhos de bestas e animais fantásticos enquadrados em planos carregados, sem volumetria ou perspectiva), acentuam ainda mais o ambiente de desolação e irrealidade. O traço, ao mesmo tempo delicado e com referências ao universo da banda desenhada, contribui para esta deambulação entre fantasia e veracidade.
Contudo, os desenhos de Fonte Santa ilustram situações reais, realizados a partir de fotografias de imprensa de seis situações específicas, às quais os seus títulos subtilmente aludem: Chevy-GMC, Chernobyl, Kabul, M16, SU27 e Dança da doença mental.
O que sobressai destas imagens é um quase surreal retomar de uma possível, quanto improvável, rotina, fundada na destruição da estrutura humana subjacente.
O que resta nas paisagens retratas e simultaneamente desertas e novamente habitadas são as ruínas, uma boa palavra já que a sua etimologia latina, rurere, significa cair ou ruir. Somam-se-lhe as novas ocupações, os novos quotidianos e apropriações de um espaço desolado pela acção humana. Como se houvesse uma inevitável necessidade de encontrar uma repetição de hábitos que fosse mais forte do que qualquer contexto ou cenário.
As notícias destes eventos têm este denominador comum, desdobrado ao longo das diferentes situações e os excertos apresentados em seguida referem-se a notícias que documentam os eventos representados pelo artista. Tal como as imagens que lhe serviram de base, também eles foram extraídos da imprensa.
Chevy – GMC
De regresso à zona do furacão. Algumas coisas mudaram e progrediram mas grande parte ficou na mesma. Este carro, como muitos outros, não recuperará do Katrina e permanecerá onde foi trazido pelo furacão letal. Agora permanece tristemente abandonado enquanto aguarda os estragos de uma nova tempestade.
Chernobyl
Khoiniki, Belarus – O sol invernal projecta a sombra do helicóptero nas planícies cobertas de neve. As casas dos agricultores estão vazias, com as suas janelas partidas. As quintas foram abandonadas há muito tempo.
Em 1986, mais de 20,000 pessoas foram evacuadas deste território, num raio de 30 km da central nuclear de Chernobyl, ao mesmo tempo que esta emitia radiações, naquele que foi o prior acidente nuclear.
Hoje em dia, a zona, assinalada nos mapas da região com uma sinistra mancha roxa, tornou-se a primeira reserva natural radioactiva do mundo. A zona em torno à central nuclear de Chernobyl borbulha com vida.
KABUL
Rapazes afeganes jogam futebol na neve em frente às ruínas de um palácio em Kabul, Domingo, 18 de Fevereiro de 2007.
M16
Em tempos uma das principais plataformas de Saddam Hussein, este impressionante edifício é agora usado pelo exército Americano. Um bar e uma cafetaria dominam o grande salão de baile, também usado para aulas de yoga, de aeróbica e para aulas de jujitsu. No exterior do palácio está a zona da piscina, que inclui campos de voleibol, zonas de desporto e um palco para sessões de karaoke à Quarta-feira. Não é estranho observar um soldado, em uniforme, a guardar a sua arma enquanto canta Willie Nelson ou Britney Spears ao mesmo tempo que os helicópteros sobrevoam a região.
SU27
O desastre do espectáculo aéreo de Sknyliv ocorreu a 27 de Julho de 2002. 84 pessoas morreram e mais de 100 ficaram feridas na sequência de espectáculo aéreo no aeroporto de Sknyliv, próximo de Lviv, na Ucrânia. Um avião Sukhoi Su-27, pertencente às Forças Aéreas ucranianas, despenhou-se durante uma apresentação de acrobacias aéreas. Este é ainda hoje o maior desastre durante um espectáculo aéreo registado até à data.
Dança da Doença Mental
22 de Maio de 2005. Edifícios demolidos por explosivos na vila de Yunong, na região de Shenzhen. Os 16 edifícios da aldeia foram repletos de explosivas às 13:00 de Domingo, naquela que foi a maior demolição urbana realizada na China.
A história poderia ser ainda outra, a de chegar, infiltrar-se, invadir, destruir, recuperar, viver. E dentro dessa vivência pós conflitual encontrar, novamente, a rotina à qual se referem os King Mob e aqui utilizada por Fonte Santa.
Existe ainda, e uma vez mais, uma relação dinâmica e dialéctica com o espaço e com os diferentes tempos que o configuraram, como se o homem tivesse uma necessidade quase fisiológica para ocupar e preencher todos os espaços brancos, vazios, desconhecidos dos mapas geográficos, tal como refere Joseph Conrad no Coração das Trevas.
Now when I was a little chap I had a passion for maps. I would look for hours at South America, or Africa, or Australia, and lose myself in all the glories of exploration. At that time there were many blank spaces on the earth, and when I saw one that looked particularly inviting on a map (but they all look that) I would put my finger on it and say, ‘When I grow up I will go there’. (…) I have been in some of them, and… well, we won’t talk about that. But there was one yet – the biggest, the most blank, so to speak – that I had a hankering after.
‘True, by this time it was not a blank space any more. It had got filled since my boyhood with rivers and lakes and names. It had ceased to be a blank space of delightful mystery – a white patch for a boy to dream gloriously over. It had become a place of darkness. (…) but when an opportunity offered at last to meet my predecessor, the grass growing through his ribs was tall enough to hide his bones. They were all there. The supernatural being had not been touched after he fell. And the village was deserted, the huts gaped back, totting, all askew within the fallen enclosures. A calamity had come to it, sure enough. The people had vanished. Mad terror had scattered them, men, women, and children, through the bush, and they had never returned. What became of the hens I don’t know either. I should think the cause of progress got them, anyhow. (…)
I raised my head. The offing was barred by a black bank of clouds, and the tranquil waterway leading to the uttermost ends of the earth flowed somber under an overcast sky – seemed to lead into the heart of an immense darkness.
(Joseph Conrad, Heart of Darkness, 1899)
Filipa Ramos