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Fireworks
Pedro Cabral Santo
Fireworks, 2009, tinta-da-china sobre papel, 2009, 20x18 cm

Fireworks, 2009, tinta-da-china sobre papel, 2009, 20x18 cm

WHEN I HEARD THE LEARN’D ASTRONOMER

Hen I heard the learn’d astronomer, When the proofs, the figures, were ranged in columns before me, When I was shown the charts and diagrams, to add, divide, and measure them, When I sitting heard the astronomer where he lectured with much applause in the lecture-room, How soon unaccountable I became tired and sick, Till rising and gliding out I wander’d off by myself, In the mystical moist night-air, and from time to time, Look’d up in perfect silence at the stars.

Walt Whitman (1819-1892)

Publicado a 20 de Novembro de 2009

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Set
a
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Nov
First-Walk, Scannogram, Lambda-Print, 55x40 cm

First-Walk, Scannogram, Lambda-Print, 55x40 cm

Nem Tanto ao Mar Nem Tanto a Terra é a primeira exposição individual de Rita Soromenho em Portugal. A artista Portuguesa vive e trabalha em Londres e apresentará na VPF Cream Art duas séries fotográficas, Peripatetic (2007) e Nem Tanto ao Mar Nem Tanto a Terra (2009). Criadas a partir das suas deambulações urbanas ou dos conteúdos esquecidos das gavetas de família, os seus scanogramas situam-nos entre real e imaginário e reflectem sobre perda pessoal, colectiva e um tempo votado ao desaparecimento.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra – do ditado popular nasce uma ironia que domestica o fulgor masculino de um povo de marinheiros.
Naturezas-mortas, fruto de caminhadas, e rendas fantasmagóricas, que volteiam como polvos num profundo mar de trevas, são o objecto das duas séries apresentadas nesta exposição por Rita Soromenho (Lisboa, 1977).
Porque seria sintomática esta meditação: enquanto a mão tecia, o pensamento floria no círculo de mulheres que conviviam entre herbários e macramés – um refúgio meditativo contra um obscurantismo intelectual imposto durante séculos. Hoje podemos percorrer o mundo com os mesmos ténis, mas nem tanto ao mar nem tanto à terra.
 
Passeios peripatéticos, caminhadas sem destino que se fazem dentro de uma geografia reconhecível, de uma circunferência desejada – quase familiar –, que permitem ao pensamento vaguear enquanto caminhamos em torno.
A série Peripatetics (2007), de Rita Soromenho, nasce deste vaguear contemporâneo por paisagens naturais numa cidade, neste caso Londres. Nos 8 scanogramas aqui apresentados surge uma nova interpretação da natureza “ainda viva”, segundo a designação anglófona de still life.
Em imagens como Leabank walk os estames dos dentes –de -leão ainda parecem desprender-se das suas flores, e estes bouquets de grande simplicidade na sua suspensão espacial adquirem uma presença cheia de densidade e de memória.
Como a borboleta que se aproxima das três nêsperas na homónima pintura de Adriaen Coorte 1 (1883 – 1707, Middelburg), existe, na natureza morta, uma procura de essencialidade, tanto no objecto como na sua representação – um equilíbrio zen.

Porém, ao olhar atentamente para estes bouquets, há algo que perturba a ordem das naturezas-mortas: estão imóveis sem suporte físico, são flores suspensas num espaço sem força de gravidade – evocando-me um pequeno conto de Clarice Lispector  que começa assim: « Juro, acredite em mim – a sala de visitas estava escura – mas a musica chamou para o centro da sala uma coisa que acordada estava ali – a sala se escurecera toda dentro da escuridão – eu estava nas trevas – senti porém que por mais escura a sala era clara – agasalhei-me do medo no próprio medo – como já me agasalhei de ti em ti mesmo – o que foi que encontrei? – nada senão que a sala escura enchia-se de uma claridade que parecia a claridade de um sorriso – e que era imanente na flor – e que estremecia no centro dessa difícil luz…».2

Nos 7 scanogramas de Nem tanto ao Mar Nem Tanto à Terra (2009), as formas das rendas, destes crochets que vagueiam num infinito primordial, são trazidas para primeiro plano pela artista.
Observamos o mesmo tratamento de fundo negro aplicado a um objecto do dia-a-dia: as rendas da família. Mas, nestas imagens, opera-se uma transformação do objecto num ser quase animado, surge um bailado silencioso de formas, uma vida para além das memórias.
Fotografia digital sem câmara, na qual a mão compõe o objecto, que recolhe e dispõe na composição; a seguir, é scannarizado, radiografado sem que os seus ossos apareçam, e a sua superfície imprime um rastro na imagem, como se o código genético pudesse ser visível na pele.
Etimologicamente, scan viria da raiz latina scandere ou subir passo a passo, ou seja, outra itinerância que permite observar lentamente o movimento.
Talvez esta redescoberta da natureza-morta, renovada pela técnica digital da fotografia que serve de memória à humanidade nos seus registos e arquivos recentes, seja um sinal de um retorno à civilização.

Sílvia Guerra
Setembro 2009

 

www.ritasoromenho.co.uk

Publicado a 16 de Setembro de 2009

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Mai
a
20
Jun
doodling infinity, 2009, 29x21,30 cm

Doodling Infinity, 2009, impressão a jacto de tinta sobre papel mate, 29x21,30 cm

Doodling Infinity

Existem pessoas, no seu dia-a-dia, a manipularem pequenos objectos, subconscientemente, “doodles” no mundo inteiro. Existem mesmo “actividades” universais tal como roer uma caneta, brincar no café com o pacotinho de açúcar vazio, partir um fósforo com os dentes, etc…
Os doodles são produzidos independentemente das suas nacionalidades, fronteiras geográficas ou sociais; são uma prática universal e extremamente subconsciente.
O facto de existirem como um acto compulsivo, atribui-lhes semelhantes qualidades à prática criativa do artista. No entanto, através dessa manipulação de objectos universais, existe uma obsessão, um certo sentido de reza, de aposta, de culpa, projectado no objecto num sentido universalmente intimista de homens, mulheres e sobretudo crianças.
No doodle não há compromisso entre mim e a arte, não produzo nada; no entanto ao apontar para a existência dos doodles, estou a interagir com eles roubando-os, etiquetando-os, fotografando-os e coleccionando-os; colecção esta que consiste em milhares de doodles tendo começado a coleccioná-los em 1982 na Slade School em Londres.

Joana rosa, 2009

 

Esta entrevista foi realizada à artista Joana Rosa por ocasião da exposição, Doodling Infinity, 2005-09, na VPF Cream Art Gallery, em Lisboa.

João Silvério: Olá Joana Rosa!
Joana Rosa: Olá João!
JS: Joana, esta exposição que vais fazer na VPF Cream Art Gallery é uma exposição em que regressas aos doodles ou os doodles mantêm-se como prática artística específica do teu trabalho, há muitos anos? A última exposição dos doodles foi em 2000, no CCB, com a exposição Initiare.
JR: Sim, em 2000.
JS: Podes explicar-nos melhor?
JR: Comecei os doodles em 1982 na Slade School of Art, em Londres. Fui coleccionando, recolhendo doodles na rua ao longo do tempo. Tenho milhões, internacionais, até e gostava de ter de outros continentes, do mundo, porque é uma coisa que todo o mundo faz. O tempo passou e eu acumulei uma tal quantidade de doodles e da mesma maneira que amadureci como pessoa e como artista, também os doodles amadureceram.
O que me fascinou é que eles não mudaram como objectos conotados com a Pop Art, ou a Arte Povera, ou conceptual, ou pós-moderna. Os doodles são uma coisa que se mantém e isso fascinou-me tanto que são algo universal com a qual eu me identifico bastante porque confio neles, bastante, são puros enquanto objectos, eu não posso dizer que sejam esculturas porque isso seria muito pretensioso.
JS: Mas porquê? Por seres escultora?
JR: Sou formada em escultura mas sou um bocadinho de tudo.
JS: Sim, eu sei.
JR: Mas é a forma de arte na qual eu confio mais.
JS: Na nossa conversa antes de começarmos a gravar a entrevista, dizias precisamente este ser um objecto mais puro, esse objecto mais puro tem a ver com o facto de te distanciares porque não assinas os doodles.
JR: Porque não são feitos por mim, eu apenas aponto para a sua existência.

JS: Mas esse apontamento tem uma marca pessoal que é uma marca que identifica; uma forma de fazer que é a etiqueta, ou seja, como tu classificas cada um deles, muitas vezes adicionando pequenos elementos que remetem para a memória do momento, ou para a história, ou para um elemento identificativo da pessoa que os manipulou.
JR: Sim, eles têm uma história subconsciente sobre cada indivíduo, as pessoas não dão por isso quando os fazem.
JR: Sim, não tem. A escultura formal tem uma história conceptualizada pelo artista.
JS: Sim, está integrada num processo histórico.
JR: Está integrada na história de arte, etc. E os doodles não, por isso é que as pessoas recusam dizer que os fizeram e eu fotografo-os, mostro-os, digo “olha tu fizeste isto” e as pessoas respondem “não me lembro nada de ter feito isto”.
JS: Porque é um acto subconsciente e irreflectido, pois não há consciência de estar a produzir um objecto determinado.
JR: Sim, mas no entanto ele reflecte totalmente o estado de espírito de cada pessoa, reflecte em que é que a pessoa está a pensar, ou a conversar, ou se está mais nervosa, torce o elástico à volta do dedo, com muita pressão ou se está calma, brinca com o lenço de assoar ou morde um fósforo, e por aí fora.
JS: Vais apresentar nesta exposição cerca de 120 imagens que são registos documentais, e os doodles não vão lá estar, de facto.
JR : Não.
JS: O que vai ser exposto são imagens trabalhadas por um fotógrafo.
JR: São.
JS: Portanto, há aqui uma outra intervenção, que é a intervenção do fotógrafo, que vai fotografá-los sobre fundo negro como se fossem objectos muito singulares.
JR: São.
JS: A palavra singular é uma palavra meia estranha, não é?
JR: É!
JS: Porque ninguém consegue perceber muito bem porque é singular. Neste caso é singular porquê?
JR: É singular porque as pessoas são únicas, cada pessoa é única e cada objecto é singular, de facto.
JS: Então cada doodle é irrepetível?
JR: Eles não são completamente sósias uns dos outros, mas há doodles universais! Partir um fósforo entre os dentes, brincar com o pacotinho de açúcar vazio no café, chupar e trincar uma caneta, etc.
JS: Ou seja, há acções universais com diferentes tipos de objectos no acto do doodling?
JR: E o facto de eles serem fotografados?
JR: Ah! Eu fiz a selecção.
JS: São fotografados como se fossem jóias, ou seja, não são fotografados em cima de uma mesa que seja reconhecível, não são fotografados na mão de alguém que os está a fazer, são fotografados isolados.
JR: São isolados e é por isso que o cenário por detrás dos doodles é incógnito e incolor.
JS: Por exemplo, a pessoa brinca com o papel mas deita fora.
JR: Sim.
JS: E tu recolhes do chão, ou recolhes de uma mesa de café?
JR: Eu espero. Com as crianças é diferente do que com os adultos. Eu peço-lhes para mos darem, explico-lhes porquê e elas sentem-se artistas…as crianças são as pessoas que fazem mais doodles, pois têm sempre algo escondido na mão que manipulam muito. Eu sou a detective.
JS: Como?
JR: O detective fica a observar os outros em sítios públicos até as pessoas abandonarem o seu doodle.
JS: Partilhar o tempo dos outros?
JR: Partilhar o tempo dos outros, observar as pessoas que estão a fazer doodles, em jardins, em escritórios, em escolas, em cafés, nos cabeleireiros. Esperar que as pessoas acabem de fazer as manipulações com os seus objectos para eu correr e buscá-los, porque para mim são ouro.
Esta exposição é uma selecção, recolho cerca de 4 ou 5 por dia, eu estou na rua das nove da manhã às seis da tarde. E é uma selecção porque eu tenho bastantes, eu nunca mostrarei os próprios objectos porque eles têm o aspecto de lixo, asqueroso, nojento, usado, com suor.
JS: De um desperdício, de um lixo?
JR: Um desperdício suado, com micróbios e tudo, com gripe! (risos).

JS: Quando recorres à fotografia, aliás, uma prática que tu já tinhas iniciado há muitos anos e que foi também utilizada como meio na exposição do CCB, os objectos nunca aparecem?
JR: Os objectos nunca são dados a conhecer, mas o universo a que eles pertencem.
JS: Privas-nos desse universo?
JR: Privo, mas não privo da história, porque tenho a etiqueta e a fascinante história de cada doodle.
JS: A etiqueta tem sempre muito poucas indicações.
Por exemplo, há pouco, quando víamos algumas fotografias, um deles referia-se a alguém que tinha mãos gordas, mas doces. Portanto, há alguma coisa que associas à figura, mas também ao carácter daquele que observas longamente.
JR: Claro que sim, porque as pessoas têm as suas personalidades e maneiras de estar, que são idênticas ao objecto.
Há algo que eu acho muito curioso: por exemplo, o artista é sempre – e refiro-me à pessoa que faz o doodle – muito parecido fisicamente com as suas esculturas, com os seus trabalhos e os doodles, com as pinturas. Por exemplo, o Giacometti fisicamente, é igual às suas esculturas.
JS: É semelhante.
JR: O Picasso é igual aos seus desenhos, o El Greco é igual às suas pinturas. As pessoas são parecidas, as pessoas projectam-se a si próprias, fisicamente na arte e também nos doodles, têm uma linguagem que representa o seu eu, a sua dimensão, a sua escala humana, projectam-se sobre os objectos, e eu observo muito isso nos doodles, porque os doodles são iguais ao aspecto que as pessoas têm e até ao feitio, á personalidade e ao estado de espírito. Porque eu também observo a maneira de estar de cada pessoa.
JS: Se fosse possível apresentar ou fotografar todos os doodles que recolheste até hoje, estarias a traçar um itinerário do comportamento humano, irreflectido, e não consciente de uma prática que tu vais transformando em cada momento que expões os doodles. Porque há um momento em que os doodles não aparecem, ficam guardados em caixotes, acumulados.
JR: Selecciono os que vão ser fotografados, os mais complexos. Eu tenho um grande conhecimento sobre pessoas desconhecidas porque passo horas a observá-las.
JS: Uma intimidade com o anónimo.
JR: Sim, enorme, enorme, eu gosto muito de observar pessoas desconhecidas, tentar adivinhar, investigar. Nas rugas dos velhos está chapado o seu feitio.
JS: Portanto, os doodles de certa forma vão recolhendo…
JR: Os segredos.
JS: Os traços espontâneos que são não conscientes para eles próprios mas que são para ti identificativos da sua personalidade?
JR: São, porque eles revelam segredos e eu fico a conhecê-las melhor, sem elas saberem. Também gosto de ouvir as conversas que têm (risos), pois projectam os seus assuntos para a forma como manipulam o objecto subconscientemente. E são transparentes, pois nem sabem que os estão a fazer. Estão nuas: é lindo ou feio.
JS: Mas mantêm-se quase como um segredo, porque essas pessoas são anónimas, desaparecem.
JR: Sim, eu não posso pôr-me na pele delas, eu não posso ter essa pretensão, há um limite muito forte, uma barreira. Os doodles existem apenas num espaço da vida das pessoas que os manipulam. Mas tenho, por vezes, mais do que um doodle da mesma pessoa.
JS: Isto agora vem um pouco fora do âmbito da entrevista, mas quando estavas a estudar em Londres, fizeste uma série de obras semelhantes ao trabalho dos teus colegas para um open studio, creio eu.
JR: Sim.
JS: Fizeste uma obra de cada um e assinas essas obras.
JR: Com a assinatura deles.
JS: Como se fosses cada um deles e praticamente só um.
JR: Sim e depois comecei a querer distanciar-me da arte assinada por mim, foi em 1981 e fiz aquilo que seria o próximo trabalho, o último trabalho ou o trabalho mais recente de cada colega meu e todos eles na apresentação aos tutores, no dia da apresentação dos trabalhos nos seus espaços de trabalhos perante os tutores, assumiram os trabalhos que eu fiz às escondidas, que eu assinei por eles, como sendo deles. Só um é que deu por isso, um pintor, porque eu não sei pintar e ele percebeu que não era o trabalho dele, de resto todos eles assumiram. Eram doze colegas meus, foi o estúdio inteiro. Ah! E os tutores gostaram, os tutores acharam que eram bons trabalhos!
JS: Coitado do pintor… (risos)
JR: Pois, coitado do pintor.
JS: Esse episódio traz outra coisa à conversa – que embora seja uma prática diferente do longo caminho que os doodles têm no teu trabalho – que é uma certa autonomia.
O distanciamento e a relação com a assinatura não aconteceu noutros trabalhos teus que são trabalhos com uma forte marca autoral, não é? Como no caso dos desenhos que tens produzido ao longo dos anos, como na exposição no Drawing Center. Trabalhámos juntos até e mostraste esses desenhos e depois na tua carreira, nas galerias nova-iorquinas com quem trabalhaste.
JR: Há uma certa cumplicidade. Para mim assinar o trabalho é não estar aberta ao mundo, gosto de arte invisível.
JS: Arte ou artistas invisíveis?
JR: Talvez. O divertido é que há pessoas que dizem não ter jeito para a arte, para desenhar, etc., e, no entanto, os doodles são esculturas com um “design” muito conceptual.
JS: Os doodles, para ti, são tão importantes que seria interessante, por exemplo, teres um confronto com alguém que também tivesse um tipo de recolha semelhante e que tivesse esse tipo de interesses ou não?
JR: Claro que sim. Trocar, enriquecer este campo, isso seria extraordinário!
Eu espero trabalhar com um antropólogo, no futuro, porque os doodles são pré-históricos, existem desde que o Homem existe: todos brincamos com objectos ou com o próprio corpo, com uma madeixa do cabelo, com as pestanas, com as mãos.
Mas há uma coisa que me interessa imenso, tanto nos desenhos que eu faço agora, como nos que deixei de fazer: é que estou sempre à procura da escala humana, como tive formação em Ballet, em body art, a escala humana é a coisa que mais me interessa. Nós projectamo-nos para o universo por uma questão de sobrevivência.
JS: Mas também há a performatividade do corpo.
JR: Exactamente.
JS: E a performatividade do corpo como objecto, quando esse objecto pode ser uma madeixa de cabelo como dizes.
JR: Pode.
JS: Como referiste uma vez que alguém, que agora não interessa quem, tinha o que nós aparentemente chamamos um tique.
JR: São performances subconscientes. E que são conceptuais em termos de arte.
JS: … que brincava com uma prega de roupa.
JS: Sim, da camisa, do casaco. Os tiques são mais conscientes, e no outro extremo encontram-se os bibelots, há pessoas que fazem doodles e levam para casa e tornam-se bibelots como o origami, mas os doodles são performances subconscientes, isso são.
JS: Quase inconscientes?
JR: Quase inconscientes. Há pessoas que me dizem que “eu não fiz isto”, há outras que mandam pelo correio os doodles que fizeram.
JS: Isso já é quase um acordo entre ti e a pessoa, e essa pessoa sabe que tu estás a reconhecer isso como um objecto do teu trabalho artístico, mas a posteriori.
JR: Claro. Eu própria faço os meus doodles sem dar por isso, eu tenho bastantes doodles. Faço com t-shirts Lacoste, com maços de cigarros SG Ultra Light (risos); tenho os meus próprios doodles, os meus scribblings, há pessoas que só fazem scribblings e não fazem doodles; depois há doodles que não se mexem, que não são manipuláveis, são como pedras, não se alteram como objectos. São acariciados, são bons para o stress.
JS: Sim, são manipuláveis mas não se alteram na sua forma, como a pedra.
JR: Como uma pedra ou um bocado de madeira, algo duro, muita gente tem doodles dentro dos bolsos, porque eu vejo os bolsos a mexerem.
JS: O que é muito interessante porque isso transforma o objecto numa espécie de fetiche?
JR: É um fetiche. Como as chaves do carro, brincar com os anéis preciosos.
JS: Um fetiche ou um hábito compulsivo?
JR: É uma reza. Associo mais isso a um terço, que é algo que não se altera, a pessoa está ali a agarrar, como a pedir qualquer coisa; ou as moedas nos bolsos dos casacos dos homens.
JS: Portanto, quando tu falas no terço, o doodle aparece como um objecto mágico.
JR: Mágico! E a pessoa faz desejos, a pessoa tem desejos, projecta os seus desejos. Também há aqueles objectos de plástico com gel lá dentro que se compram para aliviar o stress. Mas isso já é muito consciente.
JS: Quando dizes mágico queres dizer omo um objecto de fé?
JR: Sim, de fé. De querer, de desejar, de redenção, de uma cristandade ou de uma religião. Bom, há tantas religiões no mundo, não é? E ainda bem. São milhões de religiões e há tantos deuses. O dinheiro, as pessoas muitas vezes brincam com as moedas, fazem girar as moedas como se fossem piões. As pessoas têm moedas no bolso, sobretudo os homens, nos bolsos dos casacos, eu ouço as moedas, eu não as vejo, há doodles que eu só oiço, não vejo.
JS: Portanto, o que disseste transporta-nos agora para um campo um pouco mais obscuro?
JB: Bastante.
JS: Precisamente porque tu não os vês?
JR: É assustador.
JS: Assustador porquê?
JR: Parece um filme de terror, não percebo bem o que é que está lá, o que é que existe, que formas é que têm essas coisas. Eu oiço tilintar coisas, muito. Quando vou na rua com a minha caixinha para recolher os doodles, eu gostava de roubar essas coisas às pessoas mas não posso.
JS: Esses doodles são impossíveis de recolher.
JR: Impossíveis! Não posso andar a roubar as chaves das casas, dos carros (risos) era chato.
E quanto às crianças é que é um bocado chato porque aí eu tenho a sensação mesmo de as roubar porque são os melhores fazedores de doodles, têm sempre qualquer coisa na mão, uma bolinha, um lápis. Tenho muitos lápis roídos por crianças e por adolescentes na escola. Quando vou às escolas aparecem muitas canetas roídas, tenho grandes colecções de canetas, de bicos de canetas. Estas vão-se modernizando com os tempos, antigamente era tudo bics, bics, bics e agora as canetas têm a capacidade de ser dos objectos que têm mais conotação estética, porque evoluíram. Todos os objectos evoluíram, mas a moda das canetas, vai sendo cada vez mais moderna e são mais enfeitadas e mais cor-de-rosa fosforescente ou há mais diversidade. É como os anéis e os porta-chaves, o design vai evoluindo.
JS: Joana, diz-me uma coisa, tu assistes às sessões fotográficas onde os doodles são fotografados?
JR: Claro.
JS: Controlas?
JR: Tudo. Estou sempre em todo o lado.
JS: E a classificação, a longa classificação que tens feito ao longo de quase trinta anos?
JR: Sim, trinta anos.
JS: Essa classificação é feita sistematicamente ou de tempos a tempos?
JS: Todos os dias assim que eu chego a casa etiqueto e escrevo a história dos objectos às etiquetas, e ato-as aos objectos-doodles.
JS: Os doodles, de facto, trazem uma memória de todas essas pequenas anotações. As etiquetas têm uma área para escrever muito reduzida, portanto, sintetizas ao máximo um ou dois elementos característicos daquela pessoa, algumas conheces, outras não.
JR: Sim, porque eu quero dar margem para o público imaginar, acho que um artista não deve contar tudo. O artista tem o seu mundo interior e as pessoas também têm o seu mundo interior e eu não devo impor ou mostrar tudo. Mostro só o quanto basta e a pessoa imagina o resto, senão eu escrevia um texto, explicava tudo e nem mostrava o objecto.
JR: Sabes, eu escrevo imenso sobre os doodles, gosto imenso, é um mundo infinito, mantenho um diário que espero publicar no fim da minha vida.
JS: Eu tenho alguns desses textos. As exposições dos doodles são organizadas durante anos, meses.
JR: Eu vou escrevendo.
JS: Mas quando mostras os painéis compostos pelas séries de fotografias, elas são organizadas com alguma ordem? Ou a organização da montagem da exposição é aleatória?
JR: Por exemplo, nesta exposição, são doodles entre 2005 e 2009.
JS: É importante tornar isso claro para se compreender.
JR: Não são aleatórios, por exemplo, no CCB, eu mostrei doodles entre 1995 e 2000.
JS: Depois houve um intervalo grande.
JR: Sim, estive a recolher. Depois tenho datados desde 2000 até 2005, ainda não mostrados, e agora vou mostrar de 2005 a 2009.
JS: Como disseste antes, é uma selecção?
JR: São sempre selecções.
JS: Porque fazes uma recolha de quatro, cinco por dia.
JR: Sim, mas muitas vezes não recolho nenhum. Podem ser quatro ou cinco num dia e é com muita sorte, muitas vezes não recolho nem um mas observei-os e eles existiram mas as pessoas levam-nos para casa. Já me aconteceu ficar horas à espera que as pessoas os abandonassem, ao frio, à chuva e nada. Eu tenho de ficar à espera durante horas, dependendo da profissão de cada doodler. Acontece muito, fico a conhecer a pessoa através do tipo de manipulação, mais calma, mais stressada, mais intensa.
JS: E o doodler não sabe que é um doodler.
JR: Pois não. Mas eu sei.
JS: Alguém faz doodles com objectos grandes, com objectos a uma escala maior do que a da manipulação da mão?
JS: Se for na praia, por exemplo, podes brincar, isso é mais no scribbling, por exemplo, o scribbling é maior que o duddling. Podes brincar na areia, fazer desenhos grandes que não ultrapassam a tua escala normalmente, ou seja, não vais mais longe do que aquilo que a tua mão ou o teu braço alcança.
JS: Ou que o pé, ao desenhar um círculo na areia?
JR: Sim, exactamente, desenhar um semi-círculo com a ponta do dedo e o braço, tu não te levantas para ir acabar o scribbling, as pessoas não se mexem mais do que aquilo que é preciso para fazer os seus doodles ou os seus scribblings, não se levantam, não se sentam no chão para isso, quer dizer, não movem o corpo de propósito para fazer a manipulação de um scribble. As pessoas ficam quietas e fazem o que lhes dá jeito porque é uma coisa secreta, e é imediata e sobretudo confortável, os doodles são muito confortáveis de fazer. Bom, uma amiga minha estava com um desgosto de amor e ao desabafar comigo, estava completamente nervosa e esteve o tempo todo a enrolar um elástico à volta do dedo, de tal maneira que o dedo começou a ficar branco e roxo e doía-lhe, mas ela nem devia sentir a dor, porque estava a chorar e foi muito triste. Fiquei com o elástico. Tentei ajudá-la, mas há doodles que doem. Mas em geral são muito confortáveis de fazer. A pessoa que está a fazer o dooddle ou o scribble, não quer nada, quer simplesmente estar, quer existir, quer estar como lhe apetecer, à vontade, mas em geral são pessoas tímidas que fazem os doodles.
JS: Portanto, os doodles serão um longo mapeamento do ser humano.
JR: Sim longo, enorme, desde que o ser humano começou a existir, há mais de 50 mil anos em África. Desde os Khoisan, ou Bosquínamos, da tribo San que estão na origem do Homem. Sim, é um longo mapa.
JS: Joana, obrigado pela tua colaboração e pela tua disponibilidade.
JR: Obrigada, João Silvério.

Publicado a 20 de Maio de 2009

26
Mar
a
2
Mai
De Dentro para Fora
INEZ TEIXEIRA

…do subterrâneo, 2009, marcador e lápis de cor sobre papel, 29,5x20x5 cm

…do subterrâneo, 2009, marcador e lápis de cor sobre papel, 29,5x20x5 cm

Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos aonde elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidas. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor do sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fosse pessoas vivas.
Agustina Bessa-Luís, Antes do Degelo

O percurso artístico de Inez Teixeira é marcado por uma linha de pensamento que a artista tem seguido e explorado ininterruptamente com recurso à pintura e mais recentemente ao desenho. A ideia de caminho, de percurso intimista, solitário, silencioso num interior labiríntico onde a avanços áridos se contrapõem retrocessos férteis em direcção à génese da obra de arte, está presente na sua pintura desde os anos noventa: Caminho (1997), Tempo de espera (1997), De dentro para fora (1997), Nascimento do mundo na cabeça de um artista (1999), O dever da memória (1999), Tudo o que é sólido se desfaz no espaço (1999) de volta ao futuro (2002), Cursor (2005), são exemplos disso.
De dentro para fora, evoca precisamente o percurso da imaginação desde o interior do seu lugar original, de onde após um período de gestação, alimentada por componentes nutritivos (memórias) alojados nas paredes desse espaço cerrado, é transferida para um mundo exterior: a pintura.
Os ambientes escuros habitados por formas tentaculares de cores estridentes que progressivamente se movem em várias direcções, que se contorcem e entrelaçam lentamente auto-reproduzindo-se, dão lugar, a paisagens enigmáticas que flutuam numa atmosfera de sonho.
Nestas, por entre troncos frondosos, surgem por vezes inesperadamente estruturas arquitectónicas fantásticas que se impõem como centro gravitacional, dominando o desenvolvimento de toda a composição.

Contrariamente às experiências anteriores, em que as paisagens criadas envolviam o espectador, agora, o observador assiste de longe, como que a partir de uma outra dimensão, às ténues variações que vão ocorrendo nas paisagens ao longo do tempo, de um tempo que não é o seu.
O fundo negro dissipa-se e as sombras são expulsas por uma luz branca que irrompe vinda de várias direcções. Esta torna-se ainda mais intensa através dos reflexos produzidos por mantos de não cor que pontualmente cobrem algumas das paisagens – folhas de viagem – “escritos” de jornadas solitárias por terras desconhecidas. Por entre os registos, surgem fragmentos de visões de eras remotas, que revelam ambientes gélidos e suspensos, onde misteriosamente se gerou vida. Nestes, é a circulação vibrante da seiva que quebra o silêncio dominante.
Caminhando para as profundezas da mente humana, em… de subterrâneo somos confrontados por poderosas verticais que se duplicam ilusoriamente de forma simétrica a partir de eixos horizontais que atravessam construções de cores metálicas, as quais actuam como solo fértil, dando vida aos elementos orgânicos.
Uma galeria misteriosa é desvendada pela abertura de uma membrana tecida por espécies vegetais, no seu interior qualquer tentativa de orientação é uma investida em vão. O espaço labiríntico multiplica-se incessantemente, despertando sensações ambíguas, por um lado, o desejo de encontrar algo, a atracção pelo vertiginoso, por outro, a sensação claustrofóbica que desencadeia uma necessidade de fuga para o exterior.
Todos estes ambientes têm em comum o crescimento da vegetação como metáfora da imaginação incontrolável, que fluí alimentada por relações e combinações mais ou menos irracionais de memórias de outras vidas.
A pintura para Inez Teixeira, como o demonstra De Dentro para Fora, é uma extensão da memória e da imaginação, tal como o livro o era para Jorge Luís Borges , e como a própria afirma, é uma ferramenta a partir da qual torna “visível aquilo que não poderia ser de outra forma” .

Mariana Roquette Teixeira

Publicado a 4 de Maio de 2009

29
Jan
a
21
Mar
VICE-VERSA
PASCAL FERREIRA

pascal-ferreira-vice-versa

II
Porque apesar de perto ser distante, é sempre de mais perto que olhamos o que queremos conhecer.

Assente nas finas estacas, a acentuar a instabilidade da construção, duas estruturas desnudam o processo de camada em camada. É o tempo e as circunstâncias que nos erguem. De arestas angulosas e superfícies planas vamos caminhando numa construção parcial que de nós fazemos.

A individualidade descentra-se, estendendo uma longa linha, como se o nosso percurso fosse sempre definido pela vontade de prolongamento num outro. Algures, no meio dessa vontade, edifica-se um momento. O encontro interrompe a aridez da pele. A cor intensifica a emergência de um não-eu que, simultaneamente, me define e, no gesto, me prolonga.

O que pensávamos de nós tem o tempo para acontecer. Pela acção caminham as palavras
onde “o ego se faz exterioridade” (Nancy, 1976). Na alteridade fica a função de recolher o traço do corpo actuante e que, apesar de subjectivo, será sempre uma forma de existirmos.

Eu sou perante ti, tanto quanto és perante mim, juízos cambiantes de um eu…
Juízos cambiantes de um tu.

Eu olho-te. Tu olhas-me.
Tu falas-me. E vice-versa…

Carolina Rito

Publicado a 29 de Janeiro de 2009

21
Nov
a
31
Dez

homem de lama revisitado, 2008, faiança policromada, 31x30x30 cm

homem de lama revisitado, 2008, faiança policromada, 31x30x30 cm

O encontro amoroso de Cioran com Nancy Sinatra.

O filósofo e escritor romeno E.M.Cioran, tido com o último grande nome do pensamento trágico pessimista, escreveu que “ao que parece, o homem se deu os deuses por uma necessidade de se ver protegido, garantido – na realidade, por uma gana de sofrer. Desde que acreditou na sua multiplicidade, abriu espaço para uma liberdade de escolha, para evasões. Na sequência, limitando-se a um deus, passou a ser afligido por um suplemento de amarras e embaraços. Certamente não há outro animal que se ame e se odeie tanto, até o limite do vício, e que se daria o luxo de uma sujeição tão pesada. Quanta crueldade para com nós mesmos – unir forças com o grande Espectro e fundir o nosso fardo ao Dele! O único Deus torna a vida irrespirável” [i]. Essa pérola de humor da auto-comiseração poderia ser uma introdução a um ensaio sobre o pessimismo, revogando ideias desde a antiguidade de Diógenes, o cínico, até a filosofia trágico moral da tríade Schopenhauer, Nietzsche e Kiekegaard, para encerrar exactamente nas ideias desse último grande pessimista do século XX. Sua máxima “todos os seres são infelizes; mas quantos o sabem?” é, por si, uma exegese ao carpe diem.

Mas não se trata aqui de tecer elogios ao pessimismo, mas justamente o contrário disso: rir-se dele. Dito desta maneira, o curioso título “Três novas esculturas pessimistas, e uma não tão nova” poderia ser definido como uma 2ª parte das especulações filosóficas de Tiago Carneiro da Cunha. Neste entender a 1ª parte seria “Minha contribuição para a cultura e a natureza, título do catálogo da sua anterior mostra, afinal um título é enunciado daquilo que se pretende, ou não é? De todas as formas, ambos os títulos e ambas mostras trazem a violência como tema (ou motivação?) de um processo quase inalienável na civilização. ´É claro que sempre pode-se elaborar uma tese filosófica, sociológica ou psicanalítica sobre o “homo homini lupus”. Sim, existe um mito de que a violência está vinculada à animalidade e a natureza primitiva humana. Se assim o fosse, a anti-violência jamais chegaria a ser uma linguagem e estaria fadada a ser prisioneira eterna do grito inarticulado do canibal. Segundo o mito, a própria natureza implica em violência, e os seres humanos vivem ainda, pelo menos em sua maioria, no estado violento de natureza. Mas se o mito aborda os seres humanos, o que se tem de facto em mente é uma parte da humanidade e não sua totalidade? O mito da humanidade violenta desenvolveu-se ao longo da história das civilizações, e animou até mesmo projectos utópicos humanistas, afinal quantas mortes resultaram na aplicação de políticas de renovação? Não um lobo na pele de cordeiro, mas sim um primata movido ao instinto desenfreado e com uma ferramenta, seja um tacape[ii], uma faca, um porrete, uma arma qualquer, na mão. Nesta perspectiva somos todos primatas, afinal. Mas a cultura sobrepõe-se a natureza e dominamos nossos instintos mais selvagens para gerar uma outra história possível. Como a arte que transforma a violência em simbolismo. O macaco seria um simbolismo e não um índice da violência.

Vejamos que o macaco (ou o primata) é uma figura dominante na obra de TCC, ao aparecer sob as mais diversas formas: buda, homem com sombreiro, esfinge, etc… Penso que sua mais singular aparição é a do homem-macaco no vídeo Low attention span / high curiosity rate’ (portrait of Peter Elliot (40´). Neste exercício estilístico de interpretação, o artista estava interessado na aparente contradição da função do artista como um ‘especialista’, algo que exige alta atenção, em representar um estado de ‘baixa atenção’, numa analogia directa e declarada da referência ao videoarte nos anos 60/70) com as artes plásticas. Para ele era, em certa medida, uma espécie de mapeamento de alguns limites das suas próprias ambições românticas de exibir um artista ‘possuído’, em transe mediúnico, catártico[iii]. Mas por que o macaco? “Mas o macaco tem também essa mistura de humor, sacanagem e violência. E também trópicos, de terceiro mundo, que somo nós aqui no Brasil. De toda maneira não são só macacos: tem mendigos, bandidos e policiais também. Suponho que o meu jeito de entender o humanismo é curtir o mínimo denominador comum”[iv]. Apesar de não estar na mostra “Três novas esculturas pessimistas, e uma não tão recente”, o macaco é recordado na postura animalesca de algumas figuras que apresenta.

A mostra inicia-se com uma figura de convite: Bandido, cristal rosa (2005-2008). Pertencente a série de esculturas em resina de poliéster, material que utilizou na totalidade dos seus macacos. O altivo cavaleiro tem a pose dos bandidos das favelas cariocas; ou quem sabe é um revolucionário chiapa sob o comando do Capitão Marcos, ou é mais um “mártir” de um gang da Jihad. O bandido é para nós, contudo, uma figura simpática e graciosa e parece não oferecer perigo. Sendo a “uma não tão nova”, esta obra é o elo entre o passado e o presente de novas modalidades de meios para o artista. É que a manipulação das formas é algo deveras importantes para TCC tal qual o tema. Para ele existe uma manipulação das formas que está implícita na obra, uma pesquisa formal que é justamente a parte que requer uma atenção alta, pois requer muita artesania. “A ironia levada a loucura da série facetada (dos macacos e máscaras) era tentar desenvolver uma linguagem formal completamente imbuída de acidez crítica, para no fundo afirmar que o cubismo realmente realista é aquele que denuncia este objecto (a escultura), que ele é um artesanato de luxo, metido a falar de grandes temas, e que vai ser vendido e especulado como qualquer outro objecto. Essa última frase também tem um elo com a questão formal pois existe uma tentativa de estabelecer uma equivalência das coisas, dos temas, seja o policial, o bandido, o mendigo, o macaco, etc…, isso porque todos entram nessa pesquisa formal meio ensandecida, que neste último ano passou gradualmente das pesquisas com facetas para explorações mais profundas com faiança, na qual agora está misturando dedadas e facetas para criar vários tipos de “ilusões”, i.e. a ilusão de lama, ou de fogo e fumaça no microondas. Porque quanto mais uma vez acredito que a mensagem maior também sendo passada através da forma, e não dos temas. Penso bastante numa frase que li na biografia do Philip Guston e que acho bastante coerente. Ele diz que o desafio pessoal dele era desenhar um sapato, pois se conseguisse fazer que algo tão chato como um sapato ficasse interessante, então teria tido real sucesso na empreitada artística” [v].

Das explorações mais profundas na faiança surgem a nova série de trabalhos, onde uma mistura de imagens que vão se formando e ganham depois cores psicadélicas. Das tais “Três novas esculturas pessimistas”, O Homem da lama revisitado (2008), o Manequinho e microondas e a Composição Luso-brasileira (2008), o humor ainda é a parte mais visível do tema onde as referências são singulares e é preciso desvenda-las, pois a violência continua lá, a espreitar-nos. A Composição Luso-brasileira é um pequeno souvenir de viagem que mergulha fundo as raízes da formação brasileira. Um soldado quinhentista esborracha a face de uma índia numa cena grotesca. O detalhe que a ferramenta da agressão é ao mesmo tempo bastão e seu falo. Chocados? Pois bem que tal uma espreitada detalhada nas gravuras de Debret e nas esculturas de Bordalo Pinheiro? No entanto a violência é amenizada pelo lado sexual explícito na acção. A ingenuidade nunca foi a arte dos inteligentes, mas sim a ironia. O Homem da lama revisitado é uma peça que lida com tempo e imprevisibilidade. Uma figura expressionista de boca aberta que emerge da lama que molda seu corpo. Ou será o contrário? Não sabemos, TCC deixa para nós essa escolha. Há ecos de biscuit rococó vienense, do expressionismo das figuras angustiadas de Emil Nolde, da crónica social de Bordalo Pinheiro, da saturação da imagem “jeffkoonsiana”, do informe de Lucio Fontana. O seu Manequinho e microondas é a sua interpretação da famosa escultura manekkenpis, símbolo de Bruxelas. Mas é também uma aproximação fisionómica com o Manequinho que enfeita a entrada do clube de futebol Botafogo, no bairro do mesmo nome na cidade do Rio de Janeiro. Ou melhor, a reinterpretação que o artista empresta a peça ao evidenciar na figura a cabeça enrolada com uma camisa, como os traficantes das favelas cariocas, quando não querem que seus rostos sejam expostos. Há uma intenção do desafio do Manequinho pois enfia a cabeça numa pilha de rodas de carro, uma alusão ao forno crematório de cadáveres (presuntos, na gíria local) utilizado pelos traficantes que recebe o nome de “microondas”.

A razão temática de TCC pode ser a violência, o sexo, a dominação, o mundo falo cêntrico, que fazem mover as acções das suas figuras habitantes do seu mundo, i.e. os macacos, as caveiras, os bandidos, as índias, os soldados, associadas aos diamantes, as máscaras, as pranchas de surf que mais parecem totens ou máscaras vudu, tornam-se um espectáculo de humor e cinismo. “O humor levado até a loucura, parece ser um dos poucos jeitos que meu lado ‘humanista’ consegue lidar com a loucura violenta da realidade. Hoje em dia eu não me preocupo tanto com o facto de a violência estar ligada a origem da cultura quanto o facto de ser parte integral dela. Afinal a violência está ai, por todo lado, sendo perpetrada constantemente, em todo lugar. Então o meu lado humanista me diz que eu devo resgatar essa função “debretiana”, “bordalliana”, da arte de explicitar a violência quotidiana com humor, pois ambos o fizeram com um humor ácido, tragicómico. Por outro lado, o meu lado místico, i.e. não antropocêntrico acha isso maravilhoso, pois de uma perspectiva mística, a violência é tão parte do mistério da criação quanto outra parte da existência. Eu queria misturar esses dois lados no trabalho. Enfim, é também pelo humor que vejo essa minha insistência em títulos redundantes. Eu queria fazer ícones iconoclastas, estatuetas que tenham um mínimo de auto-análise e saibam que fazem parte de um sistema corrupto e cínico, que vai absorve-las para transformá-las em ídolos falsos. Tem esse meu lado moralista que é um saco… mais uma vez é minha tentativa de ser realista” [vi].

Para TCC elas são essencialmente uma maneira de exorcismo de questões como especulação, capital, ambiguidade da obra de arte, falsos valores, originalidade. O seu caldeirão antropofágico cabe um pouco da cultura de rua do Rio de Janeiro, um pouco da história (nossa) luso-brasileira, a escultura (crítica) de Jeff Koons, o inacabado (puro) de Lucio Fontana, a escultura popular e os estímulos visuais oriundos do mundo em frenesi – vide as notícias de guerra que inundam as TV e jornais, as descobertas científicas e arqueológicas, o acelerador de partículas, os novos peitos da pin-ups de Hollywood, o mito do bandido herói no cinema latino-americano, as guerreiras assassinas na banda desenhada de Crumb, as louras do western pop de Tarantino ou Nancy Sintra a cantar docemente “Bang bang, my baby shoot me down…”. “Três novas esculturas pessimistas, e uma não tão nova” seria o encontro amoroso de Cioran com Nancy Sinatra, afinal baby, “só dói quando eu rio”[vii].

Paulo Reis

 

[i] Tradução livre de um extracto do livro Cahiers, Paris: Gallimard, 1997.

[ii] Porrete usado pelos índios brasileiros.

[iii] Depoimento do artista.

[iv] Em conversa com o artista Luiz Zerbini, publicado no catálogo Minha contribuição para a cultura e a natureza. Vol. 1- São Paulo: Galeria Fortes Vilaça, 2006-2007.

[v] Depoimento do artista.

[vi] idem.

[vii] Citação da letra Valsa do Maracanã, de Paulo Emílio e Aldir Blanc.

Publicado a 21 de Novembro de 2008

25
Set
a
8
Nov
Sans Image
ANA CARDOSO
Untitled, 2008, acrílico, colagens e pigmentos sobre tela de algodão, 193x176 cm

Untitled, 2008, acrílico, colagem e pigmentos sobre tela de algodão, 193x176 cm

“What does Rousseau say without saying, see without seeing? That replacement has always already begun; that imitation, principle of art, has always already interrupted natural plenitude; that, having to be a discourse, it has always already broached presence in difference; that in Nature it is always that which supplies Nature’s lack, a voice that is replaced by the voice of Nature.”

Falar sobre imagens nunca é fácil. As palavras e as imagens são inimigas íntimas. No início eram o mesmo, as palavras eram imagens. Símbolos. Mas essa unidade teológica do objecto material com o seu correspondente transcendental foi violentamente interrompida com a invenção do alfabeto. Depois disso mais nada foi o mesmo. Platão ainda fez uma tentativa de reconciliação ao escolher “eidos”, literalmente a silhueta exterior que um objecto oferece aos olhos, para significar “ideia”. Infelizmente, qualquer mudança que se faça ao nível da supra-estrutura nunca afecta a infra-estrutura. Mas Platão não era versado em marxismo, e tudo o que conseguiu foi distorcer a anterior unidade simbólica numa relação entre aparência e essência. A história dessa relação é a história da arte. Todas as imagens que se inscrevem dentro dessa relação fazem parte da história da arte e descrevem todas as formas possíveis que esta pode assumir. Fora da história da arte fica o resíduo da anterior unidade, aquilo a que a antropologia chama crenças animistas e a que a psicanálise chama o estado narcísico de omnipresença do pensamento; bonecos de vudu e kitsch cultural. Para nós, que sabemos perfeitamente que um significante não é idêntico ao objecto que significa, excepto quando ocasionalmente escrevemos o nome de alguém num banco de jardim, é também evidente que nenhuma palavra ou imagem tem algum poder sobre aquilo a que se refere. Excepto obviamente o facto de o representar. Naturalmente esta nova World Order estabelece uma hierarquia na qual as imagens são sempre o nível mais baixo. Afinal, conhecer significa possuir mesmo se essa posse for uma posse imaterial, como uma tomada de posse da consciência. Assim, em arte normalmente a questão não se coloca tanto entre produzir imagens que se possam analisar discursivamente mas em produzir imagens que contenham já o seu próprio subtexto. Por outras palavras imagens cuja função é a de evocar um discurso, anulando-se subsequentemente como imagens para que esse discurso possa tomar o palco. Todas essas imagens escondem no entanto um acordo secreto com o seu público, um pacto subentendido de se referirem às suas expectativas. Essas imagens não têm nesse sentido um destino como imagens, se como “destino das imagens” entendermos a criação de discenso, a interrupção da ordem discursiva e dos protocolos de representação.
I will have spent my life trying to understand the function of remembering, which is not the opposite of forgetting, but rather its lining. We do not remember, we rewrite memory much as history is rewritten.
Diz o narrador fictício de Sans Soleil. Em Sans Image Ana Cardoso, tentando compreender a função da representação, encontra precisamente uma possibilidade de abstracção que não é o oposto de representar mas sim o seu substrato. Através dessas imagens negativas podemos aceder ao negativo da produção de sentido. Não ao ponto onde todo o sentido é negado mas onde este é a cada instante reescrito e sempre se recusa a estabilizar.

Ana Teixeira Pinto
Berlim, Setembro 2008

Publicado a 20 de Setembro de 2008

19
Jun
a
31
Jul

Mars-1 explora através de uma linguagem visual a sua visão do planeta, da humanidade e do mundo (singular) contemporâneo dos dias de hoje.
Mars trabalha com realidades desconhecidas do subconsciente e com vários estados de percepção, as suas obras são retratos de viagens a novos e inexplorados lugares do consciente.

Existe um imaginário cósmico e paisagístico que se expande no trabalho de Mars-1. O seu trabalho leva-nos numa viagem ao extradimensional e ao fantástico.
E como se não bastasse o artista enfatiza a sua realidade irreal com uma estranha presença de esculturas de extraterrestres.

Erik Davis escreve no texto para o catálogo da exposição “Mapmakers”
(…) é importante considerar que estes trabalhos são, por vezes documentos de experiência. Este artista embarcou numa viagem para definir visualmente a relação entre o racional, pensamento cognitivo, e o impressionante e fantástico mundo dos sonhos do subconsciente, convidando o observador a experimentar os estados de consciência que fazem parte da obra de arte.
Mars na sua pintura improvisa até que a imagem, a cor e a composição se transformem numa só. A sua pintura requintada em detalhes varia da abstracção à paisagem espacial da ficção científica. As suas influências vão desde elementos da arte do graffiti à animação japonesa, e claro á ficção científica e o espaço
Amrei Hofstätter, sobre o trabalho de Mars-1, in “Experimental Art and Design Magazine nº.24”
Mars -1 é uma criatura extraordinária e o nome constitui uma homenagem à estação automática inter-planetária da União Soviética que foi desenhada para revelar a superfície de Marte.
A 23 de Maio de 2007 um grupo com os melhores cientistas do mundo foi enviado numa missão extraordinária. Introduziram-se no corpo de uma forma de vida aparentemente extraterrestre encontrada em estado de coma num campo perto de São Francisco, faz somente dois dias. A equipa utilizou um submarino reduzido ao tamanho microscópico e foi injectado na corrente sanguínea, para tentar chegar ao cérebro passando através do coração e dos pulmões. Á parte de examinar a sua condição física e as possíveis semelhanças com a espécie humana, um psíquico a bordo vai tentar entrar em contacto com o alien através das correntes mentais. Mas incidentes imprevistos ocorreram e a equipa nunca voltou da sua viagem. Este documento é uma compilação do material extraído da investigação e do relatório enviado pelo capitão até ao momento em que a ligação foi interrompida e o submarino ficou inoperativo.
(…)

A arte de Mário Martinez tem abrangido um extenso território, dos grafitti enquanto jovem adolescente à criação de uma série de estranhas e maravilhosas figuras em vinil, que são expostas internacionalmente.

A exposição patente na Cream Art mistura esculturas em vinil e bronze com uma nova série de pinturas.

Publicado a 18 de Junho de 2008

27
Mar
a
3
Mai
Desenho
JORGE FEIJÃO

S/Título, 2008, acrílico, óleo, tinta plástica cola branca e carvão s/papel, 100x100 cm

Sub specie aeternitatis

Wittgenstein numa conferência sobre ética, fala do desespero que sentia quando tentava dizer alguma coisa que verdadeiramente tivesse valor. Este desespero era o sintoma da dificuldade em fazer com que a linguagem dissé-se aquilo que ela nunca poderá dizer: o bem, o belo, a ética, a estética. Para completar esta imagem o filósofo, descreve esta tentativa em encontrar a palavra certa, a palavra que salva, como uma corrida desesperada contra as grades da nossa prisão.

Da metáfora de Wittgenstein toma-se a lição, ou aprofunda-se a evidência, que o humano é um ser numa prisão: preso à linguagem, ao mundo, ao campo visual. As grades desta prisão são constituídas pela experiência, a cada dia renovada, que o tempo tem um limite e o espaço é limitado. Nesta nova série de desenhos de Jorge Feijão existem duas prisões que não são para os nossos corpos, mas para a matéria, pulsional, erótica e muitas vezes grotesca, onde a arte vai buscar alimento. Matéria, em permanente metamorfose, que arde dentro das grafites, e invisível nas folhas de papel.

Nos outros desenhos também se experimenta o ‘estar-se preso’, aí o elemento de aprisionamento que impede a saída é o próprio mundo que, ao aparecer sub specie aeternitatis prescinde da nossa presença e assume-se como entidade regulada por leis internas de movimento: mas, neste caso, ficamos do lado de fora a querer sair do vazio, do infinito, do eterno e a querer entrar na plenitude mundana, na finitude, no tempo presente, na prisão que é o mundo. Este fez-se objecto de contemplação — por isso está pousado sobre um plinto —, ficou frio e o nosso amor só se pode expressar sob a forma de exercícios do olhar. Ver assim o mundo significa vê-lo como objecto só alcançável através da contemplação e dos exercícios mais extremos da espiritualidade.

Esta contemplação é paradoxal porque a visão sub specie aeternitatis tem na experiência do limite o seu primeiro sinal e na prática artística este é um território fértil. No caso de Jorge Feijão os seus desenhos começam por conhecer um primeiro limite na folha de papel, depois na figura e, depois, no seu próprio gesto. Por isso muitas vezes os desenhos parecem querer fugir da superfície, outras vezes transformam-se em nebulosos centros de acumulação de matéria e energia a que nada talvez possa corresponder. Muitos projectam sombras e transformam o ponto de vista do espectador em campo de escondimento, lugar a partir do qual só se podem ver vultos, sombras, fantasmas e nunca as coisas reais.

A cada desenho é o nosso olhar que, através da presença da negatividade introduzida pelas sombras e pelo sem forma, se vai purificando do excesso e, paulatinamente, construindo o local de onde se pode ver o mundo. O “biombo” de Jorge Feijão é um desenho-síntese porque corresponde ao reconhecimento da matéria humana como seres condenados a espreitar por entre as fissuras das camadas rochosas de que as coisas são feitas: ficamos sempre na sombra e mesmo a luz que recebemos é a que sobra do outro lado, aquela que é emanada pelo eterno que se esconde sempre atrás do “biombo”.

Nuno Crespo

Publicado a 23 de Março de 2008

22
Jan
a
15
Mar

André Banha, na conversa que teve comigo sobre os esboços deste trabalho a ser mostrado em Janeiro de 2008 (VPFCream art gallery), lançou várias hipóteses de título, todas muito próximas e todas carregadas de constante identidade quanto ao objecto a instalar e quanto a uma emotividade que essa mesma arquitectura prendia. «Guardei para ti o pôr-do-sol.» «Guardei o pôr-do-sol.» «Guardei para ti o último pôr-do-sol.» «Segurei para ti o último raio de luz.» Foram títulos possíveis que lhe ouvi. Só hoje, e com a montagem em execução, soube o exacto título: Segurei-te o Pôr-do-Sol.

A casa está construída dentro da casa. Em madeira de pinho. Em estreitas e longas fasquias de pinho de dimensões variáveis. A casa foi erguida tábua a tábua, segundo um desenho em que a constância da identidade referencial (a arquitectura — chão, tecto, paredes, frestas, vãos de abertura, ângulos de flexão sobre o seu próprio corpo de casa) e a constância das propriedades essenciais (o espaço, os rasgos de luminosidade, os nódulos da madeira fixados ou a alastrarem como se fossem ferida, a penumbra e o derradeiro raio do pôr-do-sol, que alguém — o próprio escultor — guardou, segurou, aprisionou para outro alguém) se condicionam reciprocamente.

Transformar as duas salas da galeria foi a proposta. Estabelecer nesse espaço a natureza da casa. Natureza que corresponde de um modo exacto à da escultura a erguer e, também, à da consumação da sua subjectividade. Que é aquela que, Segurei-te o Pôr- do-sol, no final encerra. Após termos percorrido o corredor que sobre si mesmo se dobra e, para além deste, termos sido lançados — desde a boca de um paralelepípedo — na sala onde dominam outros dois. Cerradas figuras geométricas, volumes que as fasquias de madeira organizam de modo a que a independência das contingências que assistiram à feitura da arquitectada casa se verifiquem de acordo com a intenção de um «guardei para ti o pôr-do-sol».

A luz irrompe (e por vezes quase se decompõe) por entre as frestas, por entre os brevíssimos espaços que ficam na justaposição das barras de pinho. Para além das suas condições de ocorrência, os raios de luz traçam. Percorrem em obliquidade o campo do criado corredor ou invadem o território maior da sala. São realidades de referência que percorrem a escultura instalada. A esse transporte de luz, que é um fluxo de fotões, como ao movimento molecular que é o calor, se devem os fenómenos externos que integram, de um modo tão complementar, a harmonia deste trabalho. Primeiro, ao possibilitarem a constante interferência da luz natural (ou, de uma forma alargada, de qualquer foco luminoso exterior às paredes construídas do habitáculo escultura) e depois, pelas sensações olfactivas provocadas pela intensidade das resinas da madeira, devidas à acção do calor.

Aquele que percorre esta casa de André Banha sente, por entre o percurso que lhe é oferecido pela como que articulada organicidade das madeiras, um apoio directo ao funcionamento do seu próprio corpo. A casa tende a defender o corpo e o ânimo do visitante, enquanto este a ela se adapta para que tudo corra bem. Claro, que não saberá o artista enunciar o que seja esse tudo, que se vai (ou se irá) inscrever dentro de um circuito preservado pelas acopladas tábuas. Quando o percurso conduzir os passos até aos dois paralelepípedos que irrompem das janelas onde estão instalados, das suas tábuas com ranhuras a luz liberta-se como uma realidade maior do que a própria volumetria dos sólidos. E se, ao longo da passagem, do serpenteado corredor, um ou outro raio de luz se filtrava, na presença dos corpos sólidos avançados, esse descer ou
declinar da luz toma a realidade de um estrato mais alto. Como se esse raio de luminescência fosse propriedade vinda da forma geométrica de um grande corpo celeste. Todavia, Segurei-te o Pôr-do-Sol corresponde a uma situação de mínima energia potencial.

Existem objectos que existem pouco. Não a escultura, a arquitectura casa erguida com os desperdícios de madeira. Refiro-me ao derradeiro raio de luz, a que corresponde a última luminosidade do dia. Esse pertence ao tipo de objectos que não resiste às flutuações da incerteza do mundo. Transforma-se. Desaparece. André Banha insiste em querer guardá-lo, em querer segurá-lo. Em querer manter-lhe a sua identidade entre os objectos vivos.

Dois desenhos («Sem Título», 2007, 100 x 100 cm, viochene e spray sobre papel) acompanham a arquitectura da casa. Face a eles, desenhos projectados de casas, a escultura toma a representação real. Enquanto sob os desenhados sólidos acoplados se descreve a forma e os factores que idearão as bases de hipotéticas edificações escultóricas. Há nestes desenhos uma presença de um juízo auto-crítico, que de um modo apriorístico vai envolver todo o resultado final de ordem estética que possa a imagem encerrar.

Nesse a priori teremos que observar (elementos que vão necessariamente encontrar-se na execução efectiva da escultura) factores de desempenho rigoroso: como a delimitação do espaço; e a massa que corresponde à amplitude da nossa contemplação quer do vazio íntimo da casa quer do desenho. Ainda dentro desta concepção
está presente a evolução / mobilidade dos corpos geométricos desenhados. Uma modalidade de delimitação que traz consigo factores internos repercutivos: a regularidade, a proporção, a harmonia e mesmo, em alguns momentos, a simetria.

Desenhos de volumes. Corpos sólidos que se dispõem a deixar ir o ver além das suas faces na exacta cor da madeira. Uma ou outra face ausente remete para um espaço onde guardar o último raio do pôr-do-sol na plenitude de uma câmara vazia.

A percepção da matéria contida num raio de luz foge à sua impenetrabilidade. Mas é exactamente essa impossível revelação sensível do espaço que André Banha vai querer segurar. Para depois levar essa luminosidade às volumetrias que criou e dentro das quais nos convida a sermos habitantes. O espaço arquitectónico, objectivo, está edificado com desperdícios de madeira, segundo as dimensões variáveis que o território onde a escultura se instalou permitiu. Dele surgirá a imagem final, a de transformação, a de ânimo. Aquela exacta imagem que fará confundir a tensão ou a plenitude do espaço a percorrer ou o ritmo do curso de uma série de tábuas sobre outras (ou somente justapostas), como se entre si conspirassem num duelo de pleno e de vazio. Imagem que irradiará como um fluxo no instante em que segura para a própria obra criada o pôr-do-sol e conduz, em modulação, (ess)a última luminosidade através de todas as ranhuras, através de cada fissura existente entre uma e outra fasquia de madeira.

Deste modo, ao guardar o último raio de luz, o quotidiano de profundidade da casa acresceu em grandeza. O que quer dizer: o espaço da escultura Segurei-te o Pôr-do-Sol não é somente um espaço englobante aplicado à sua superfície. Segurei-te o Pôr-do-Sol habita o seu exacto lugar e estende-se até ao horizonte continuamente sustido pela construtividade da emoção.

Miguel Fernandes Jorge

Publicado a 21 de Janeiro de 2008

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